domingo, 17 de outubro de 2021

UM POEMA DE JOSÉ LUIZ TAVARES

 




CIDADE DO MAIS ANTIGO NOME

76.

Raras vezes a fúria entrou assim tanto
em meus versos; pede-me, sobre este
salitrado chão de tormentos, uma liturgia de vida;
e eu socorro-me da névoa que vela a madrugada, 
do orvalho roubado às folhas matinais,
para dar uma consistência de realidade ao eco
ainda sem rosto pulsando na fulguração do poema.

Então fujo de mim para as obscuras fronteiras
da escrita, com um alfobre de salobras perguntas,
essas que procuram nas linhas que desenham
um destino, como a cigana de murillo,
os contornos da pátria a haver.

E é assim que concluo que nenhum segredo
é revelado ao que não demandou os obscuros 
poços do esquecimento, tal o bíblico grão
que morre para germinar e frutificar, ó mãe
que com a tinta do teu choro aleitaste não
a primavera do mundo, mas este coração dissonante,
provisório ancoradouro da anunciada despedida.

Outro que desconhecesse o rumo dos temporais
tingindo o poente dessa música convalescente,
ou a exatidão das cicatrizes no lado mais escuro
da alma, traria de novo o eco dessa peregrinação
de séculos, cantada sina do que fomos ou seremos?

E eis que conto agora pelos dedos os revelados
sinais da tormenta, da angústia da partida
no quente coração dos corajosos homens,
ó naves, aves, velas, quem desde a orla vicinal,
gozando o fresco olor do manso arroio,
poderá acusar-me de vã retórica, ou de não ter
dado voz à dor de gerações inumeráveis?


José Luiz Tavares, in Cidade do Mais Antigo Nome, com fotografias de Duarte Belo, Assírio & Alvim, Novembro de 2009, pp. 157-158.

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