sexta-feira, 26 de novembro de 2021

A CAMA A MESA

 

   Para a memória que construímos de um poeta podem concorrer diferentes aspectos, nem sempre determinados pela obra produzida. Uma bofetada no eternamente jovem René Crevel (1900-1935), por exemplo, pode condicionar a imagem construída sobre a personalidade de Paul Éluard (1895-1952), o autor de Liberté (1942) e de outros poemas contra o nazismo que circulavam clandestinamente durante o período da Segunda Grande Guerra. A filiação no Partido Comunista Francês contribui para uma infindável especulação acerca das relações do surrealismo com o comunismo, num período em que tanto o engajamento político como o engajamento artístico se fartaram de fazer vítimas mortais em todos os lados da barricada. O prefácio de Louis Aragon (1897-1982) aos Poemas Políticos, por cá publicados pela Presença com tradução de Carlos Grifo, é outro elemento a ter em conta na leitura de Éluard. A este poeta da liberdade e do amor — a relação com Helena Diakonova (1894-1982), mais conhecida por Gala Éluard Dalí, figura no museu das musas eternas —não poupou António Ramos Rosa os adjectivos mais elogiosos, nomeadamente num curioso artigo intitulado O Sim de Éluard e o Não de Michaux (1952): puro, por um lado, e «uma das mais abstractas poesias do mundo», por outro, para em suma lhe atribuir «a voz mais genuinamente harmoniosa, mais sabiamente espontânea do surrealismo». Majestoso é outro dos adjectivos recorrentes no que toca a caracterizar a poesia de Paul Éluard, recentemente traduzido por Luís Lima para a editora Barco Bêbado.
   De acordo com a nota apensa ao cólofon, A Cama A Mesa (Agosto de 2021) «teve a sua edição primitiva no dealbar de 1944», ou seja, no ano da Libertação de Paris. Paul Éluard havia casado com Maria Benz 10 anos antes. Excluído do Partido Comunista Francês, viajou pela Europa como embaixador do movimento surrealista. A amizade com Picasso levou-o a Espanha, sendo muito provavelmente consequência desse périplo os poemas finais de La Lit La Table (Enterrar Y Callar, Crítica da poesia, este com referência aos assassinatos de García Lorca, Saint-Pol-Roux e Jacques Decour). É um dos aspectos que devemos ter em conta ao ler Paul Éluard, o modo como na sua poesia o poema de cunho social se equilibra entre os aspectos de denúncia de um tempo histórico concreto e uma axiologia fundada na fraternidade. Este livro não escapa à dimensão política, embora esteja longe de se esgotar nela. Mesmo nos poemas que mais obviamente associamos a uma necessidade interventiva no curso da história, através do seu registo e testemunho, há uma voz que se eleva da intimidade e sobressai pelo modo como contorna o chamado realismo social.
   A Cama A Mesa reúne 4 conjuntos de poemas, num total de 27, alguns deles construídos em sequência, onde frequentemente somos surpreendidos por uma carga emocional que não é necessariamente negativa nem indolentemente desinteressada, nela confluindo a leveza da lírica amorosa com a experiência penosa da guerra. Veja-se como na sequência intitulada Fresco, o segundo conjunto do livro, a memória da juventude, essa idade em que a consciência do mal está ausente (ver p. 16), atravessando a experiência do amor flui, através do correr das estações, para uma espécie de sentença maturada pelo tempo: «Evitai apenas a sorte hostil a miséria / E o tédio a fraqueza e na sombra de joelhos / A promessa de chumbo de uma vida sem raiva / À vista das cauções de uma injusta felicidade» (p. 35). A possibilidade do amor num cenário de guerra é, talvez, a imagem que melhor se adequa à poesia de Paul Éluard, uma poesia onde a catástrofe nunca é absoluta, mas o terreno agreste em que a beleza pode desabrochar e, em desabrochando, reluzir mais esplendorosamente.
   Poeta do extraordinário, se é que o termo se adequa, no sentido de nos seus versos a vulgaridade ser superada pelo surpreendente, o autor de Les sept poèmes d’amour en guerre (1944) faz brilhar no escuro uma chama que nos desvia amiúde de quadros trágicos para paisagens idílicas pautadas pela clareza das manhãs. Não para aí se instalar confortavelmente, como se a viagem não tivesse regresso. O erotismo é nestes poemas uma janela aberta sobre a beleza possível, oscilando entre a felicidade da presença e a tristeza da ausência (como no poema intitulado Sem Ti). Isto provoca, por vezes, uma sensação estranha, pois ao contrário do que é costume a nostalgia surge superada pela celebração das coisas presentes: «Celebro o essencial celebro a tua presença / Nada é passado a vida tem folhas novas / Os mais jovens riachos emergem na erva fresca» (p. 21). Talvez a leitura de Ramos Rosa se mantenha pertinente: «A sua vontade de ver claro exerce-se no próprio seio da obscuridade, num combate corpo a corpo, sem qualquer espécie de intervenção sobre-humana». Resta saber se se trata de uma vontade de ver claro, à laia de um desejo de tipo utópico, ou se, por outro lado, se trata de uma visão efectiva fundada na aceitação do carácter antinómico de toda e qualquer existência. Neste sentido, a clareza andaria a par da obscuridade. Não se negam, complementam-se. Tal como a morte complementa a vida.

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