sábado, 4 de dezembro de 2021

JANELA (2004)

 


Éramos dois ou três, talvez quatro, não mais, acabados de aportar na capital e sem muito que fazer para além de responder semestralmente às expectativas da família. Encontrámos porto de abrigo no Centro Cultural de Belém, erigido entre o Padrão dos Descobrimentos, onde nunca fui, e o Mosteiro dos Jerónimos, onde nunca entrei. Preferia os pastéis de Belém quando ainda era possível ficar por lá a folhear um livro acabado de adquirir num alfarrabista da baixa. Uma vez dei com o Pimenta numa mesa defronte e estive para meter conversa, mas como nunca fui de meter conversa fiquei na minha e deixei-o na dele. Comi mais um pastel, provavelmente o sexto, bebi mais um café, provavelmente o décimo, fumei mais um cigarro, provavelmente o trigésimo, e regressei ao livro. Isto era antes dos concertos das 7 às 9, acho que se chamavam assim. Foi numa dessas borlas que ouvi pela primeira vez o contrabaixo do Pedro Gonçalves. Mais tarde, em 2004, com curso feito e capital para trás das costas, fiquei surpreendido ao vê-lo ao lado do Tó Trips, que conhecia dos Lulu Blind. Entre 1992 e 1998 frequentei muito os lugares por onde passava a malta do punk, era habitué, acho que é assim que se diz, do Gingão, depois do Johnny Guitar, depois d’afins. Quando os Dead Combo publicaram o tomo I tornei-me fã sem reservas. Vi-os várias vezes ao vivo. Julgo que a primeira foi em Alcobaça. Lembro-me bem de um concerto na Festa do Avante, com a Beatriz, muito novita, a dançar em cima das colunas. São imagens que uma pessoa guarda, coisas que ficam. Gosto muito dos Dead Combo, da fusão operada na música que foram apurando ao longo dos anos. Fala-se de fado e spaghetti western, mas há por ali tango, bolero, uma miscelânea de referências que resultou em algo singular e inédito na música popular portuguesa. Estava aqui a pensar se não terei ouvido também o Pedro Gonçalves no festival de Valado dos Frades. Talvez não. Às vezes inventamos coisas, convencidos de que aconteceram. E no final vai-se a ver e nada, era lapso, recriação da memória, falsa reminiscência, imaginação. Lamento esta perda. Caramba, lamento mesmo. Tanta gente que não faz falta nenhuma e.

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