sábado, 7 de maio de 2022

MERCY (1995)

 


Ter revisto Paris, Texas levou-me de novo a eles. Não por terem alguma coisa que ver com o filme de Wim Wenders, mas apenas pela coincidente referência ao deserto de Mojave. E por sentir uma saudade imensa do deserto, o vazio estendido diante de nós como lençol na cama por fazer. Estou infectado. Apareceram ontem os primeiros sintomas, nada de grave. Fiz o que ditam as regras, isolei-me a ler e a ouvir música. Nada mau. Pior é o palato esbatido e a energia desmaiada. O mundo fica assim protegido da minha presença, pelo menos durante uma semana. Não contagio ninguém com a doença que me traz os pulmões atados à tristeza mesquinha de quem insiste em procurar sentido para o absurdo. Tenho andado de um lado para o outro, a esmo, com um pé no abismo e outro na joi de vivre. Quantas vezes se repete em mim a palavra loucura? Fico parvo a olhar para as ocorrências, duas filhas a crescer, livros que ninguém lê sucedendo-se, uma pilha de lixo acumulado, terras herdadas que nunca pisei, duas casas pelas quais nem um tostão investi, o amor trocado pela cómoda em que se arrumam retratos, fotografias, passados, um cansaço tremendo de cativo de mim mesmo não conseguir sair de mim. Tento olhar as coisas à minha volta como se nelas não jazessem os meus olhos. Atingem-me as interpretações que faço do que vejo e sinto como dardos a trespassarem um corpo morto. É-me insuportável a facilidade com que as pessoas saltam de uma crise para a outra sem nem um dedo sujarem nos problemas que as afectam, pelo que me isolo e asilo na doença pedindo misericórdia a um deus que nunca me convenceu.

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