quinta-feira, 30 de junho de 2022

ANTI-MAQUIAVELISMO PRIMÁRIO

 

Sabendo que o Teatro da Rainha se preparava para levar à cena “Mandrágora”, peça de Maquiavel, um amigo comprou-me em preço de saldo um livro intitulado “Maquiavel e Portugal” (Alêtheia Editores, Novembro de 2007), do historiador Martim de Albuquerque. Pois que lancei mãos à obra, desconfiado do que nela pudesse encontrar de verdadeiramente interessante para o trabalho em curso. De facto, as referências ao teatro de Maquiavel destacam-se, até ver (p. 120), pela total ausência, mas sobre a recepção do filósofo nesta nação de reverenciais bons costumes há muito de curioso, interessante e até absolutamente revelador. Podia pegar em vários episódios, mas hoje ofereço-vos este que vem, de certa maneira, responder a uma desconfiança que eu cá tinha sobre eventuais relações, próximas ou distantes, entre o camarada Pessoa e o autor de “O Príncipe”, que aparece citado aqui e acolá no “Livro do Desassossego” e outras páginas que tais.
 
Isto leva-nos onde jamais eu imaginaria, a uma obra de 1760 com o extenso título “O Tolo por Arte, e o Sábio por Geito. Dois tomos em um só volume, ou o Anti-Machiavelismo, Nova Sciencia, e Arte, para que cada hum dos homens possa escapar aos detrimentos da sociedade: Obra muito necessária para quem deseja viver no Mundo com Amigos, Honra e Paz”. Fim de título. Autor: João Pedro do Vale, ou seja, António Félix Mendes. Estamos a falar de um tempo em que a leitura de Maquiavel estava proibida, sendo necessário pedir autorização de leitura e posse das obras para o estudar. As multas eram pesadas. O que pretendia o senhor Félix Mendes? Dotar o leitor de regras que o livrassem de ser pedante, orgulhoso, dissimulado, impertinente, político capcioso, «cheios de outros defeitos damnosos à boa sociedade, e ao socego do nosso espirito e do nosso coração.» Muitas e boas intenções, portanto.
 
A dificuldade estava no método. Ora vejamos: «Conclui que nem sempre he prudencia o ser prudente, e que algumas vezes o ser indiscreto era a maior discrição, sabendo que algumas vezes se fazem, e executão cousas muito bem, e muito a proposito, as quaes em outras circunstancias se devião não fazer por virtude, e pela mesma razão.» Isto concluído, «sejamos tolos (…) quando o tempo, e a cousa o pede». Mas «porque he difícil o conhecimento desse quando, desse tempo, e dessa cousa, me vi constrangido a fazer o meu Leitor primeiro bom Critico natural, e depois Tolo por arte com toda a dependencia, e conexão dessa Arte, a que se chama Critica.» Confusos? O próprio autor confessou que a si mesmo algumas vezes não se entendia, lamentando que para os seus intentos era tal «a multidão de conceitos reflexos, huns sobre os outros, que com facilidade se não podia tirar conclusão, que se não contradissesse.» Remata, com graça, Martim de Albuquerque: «Ficamos por aqui. E a quem desejar ser Tolo por arte ou Sábio por geito recomendamos a leitura directa da obra de Félix Mendes…» (p. 111)
 
É no que dá quando nos metemos a pensar a tolice. Pior foi quando acusaram este declarado anti-maquiavelista de estar a doutrinar segundo o impio e ateísta Nicoláo Machiavelo. E que tem isto que ver com Fernando Pessoa? Pois bem, é José de Almada Negreiros quem o explica numa carta leiloada em 2007, referindo-se a três inéditos que tinha sobre a história do modernismo português:
 
«O terceiro inédito é recente! “Carta-Aberta a João Pedro do Vale, autor de ‘O Tolo por Arte e o Sábio por Jeito’, a quem desenterraram um dente póstumo, arqueologicamente posterior a 1794”. Este seria mais difícil de relatar, mas firma-se apenas em fazer a apologia das vocações contra as profissões, esta coisa que não há meio de entenderem os especialistas, os inimigos das ideias gerais, estas mesmas que são o ar do corpo da alma do entendimento, etc… Ele até há filósofos especialistas! Enfim, sem a ‘Presença’ e sem a citação extemporânea do ‘Tolo por Arte e Sábio por Jeito’, a nossa melhor imaginação dada toda à criação não veria onde estava o busílis e opondo-se ao qual nasceu ‘Orpheu’.»
 
Aqui tendes como a resposta tardia a um anti-maquiavelista esteve na origem de ‘Orpheu’, movimento modernista que arriscamos dizer anti-anti-maquiavelismo. O melhor da carta, já agora, é esta frase do grande Almada Negreiros:
 
«Passou-nos a idade de gritar, morreu-nos a idade de existir, calemos e actuemos a idade de viver.»

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