Sabendo que o Teatro da Rainha
se preparava para levar à cena “Mandrágora”, peça de Maquiavel, um amigo
comprou-me em preço de saldo um livro intitulado “Maquiavel e Portugal”
(Alêtheia Editores, Novembro de 2007), do historiador Martim de Albuquerque. Pois
que lancei mãos à obra, desconfiado do que nela pudesse encontrar de
verdadeiramente interessante para o trabalho em curso. De facto, as referências
ao teatro de Maquiavel destacam-se, até ver (p. 120), pela total ausência, mas
sobre a recepção do filósofo nesta nação de reverenciais bons costumes há muito
de curioso, interessante e até absolutamente revelador. Podia pegar em vários
episódios, mas hoje ofereço-vos este que vem, de certa maneira, responder a uma
desconfiança que eu cá tinha sobre eventuais relações, próximas ou distantes,
entre o camarada Pessoa e o autor de “O Príncipe”, que aparece citado aqui e
acolá no “Livro do Desassossego” e outras páginas que tais.
Isto leva-nos onde jamais eu
imaginaria, a uma obra de 1760 com o extenso título “O Tolo por Arte, e o Sábio
por Geito. Dois tomos em um só volume, ou o Anti-Machiavelismo, Nova Sciencia,
e Arte, para que cada hum dos homens possa escapar aos detrimentos da
sociedade: Obra muito necessária para quem deseja viver no Mundo com Amigos,
Honra e Paz”. Fim de título. Autor: João Pedro do Vale, ou seja, António Félix
Mendes. Estamos a falar de um tempo em que a leitura de Maquiavel estava
proibida, sendo necessário pedir autorização de leitura e posse das obras para
o estudar. As multas eram pesadas. O que pretendia o senhor Félix Mendes? Dotar
o leitor de regras que o livrassem de ser pedante, orgulhoso, dissimulado,
impertinente, político capcioso, «cheios de outros defeitos damnosos à boa
sociedade, e ao socego do nosso espirito e do nosso coração.» Muitas e boas
intenções, portanto.
A dificuldade estava no
método. Ora vejamos: «Conclui que nem sempre he prudencia o ser prudente, e que
algumas vezes o ser indiscreto era a maior discrição, sabendo que algumas vezes
se fazem, e executão cousas muito bem, e muito a proposito, as quaes em outras
circunstancias se devião não fazer por virtude, e pela mesma razão.» Isto
concluído, «sejamos tolos (…) quando o tempo, e a cousa o pede». Mas «porque he
difícil o conhecimento desse quando, desse tempo, e dessa cousa, me vi
constrangido a fazer o meu Leitor primeiro bom Critico natural, e depois Tolo
por arte com toda a dependencia, e conexão dessa Arte, a que se chama Critica.»
Confusos? O próprio autor confessou que a si mesmo algumas vezes não se
entendia, lamentando que para os seus intentos era tal «a multidão de conceitos
reflexos, huns sobre os outros, que com facilidade se não podia tirar
conclusão, que se não contradissesse.» Remata, com graça, Martim de
Albuquerque: «Ficamos por aqui. E a quem desejar ser Tolo por arte ou Sábio por
geito recomendamos a leitura directa da obra de Félix Mendes…» (p. 111)
É no que dá quando nos metemos
a pensar a tolice. Pior foi quando acusaram este declarado anti-maquiavelista
de estar a doutrinar segundo o impio e ateísta Nicoláo Machiavelo. E que tem
isto que ver com Fernando Pessoa? Pois bem, é José de Almada Negreiros quem o
explica numa carta leiloada em 2007, referindo-se a três inéditos que tinha
sobre a história do modernismo português:
«O terceiro inédito é recente!
“Carta-Aberta a João Pedro do Vale, autor de ‘O Tolo por Arte e o Sábio por
Jeito’, a quem desenterraram um dente póstumo, arqueologicamente posterior a
1794”. Este seria mais difícil de relatar, mas firma-se apenas em fazer a
apologia das vocações contra as profissões, esta coisa que não há meio de
entenderem os especialistas, os inimigos das ideias gerais, estas mesmas que
são o ar do corpo da alma do entendimento, etc… Ele até há filósofos
especialistas! Enfim, sem a ‘Presença’ e sem a citação extemporânea do ‘Tolo
por Arte e Sábio por Jeito’, a nossa melhor imaginação dada toda à criação não
veria onde estava o busílis e opondo-se ao qual nasceu ‘Orpheu’.»
Aqui tendes como a resposta
tardia a um anti-maquiavelista esteve na origem de ‘Orpheu’, movimento
modernista que arriscamos dizer anti-anti-maquiavelismo. O melhor da carta, já
agora, é esta frase do grande Almada Negreiros:
«Passou-nos a idade de gritar,
morreu-nos a idade de existir, calemos e actuemos a idade de viver.»
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