Num artigo intitulado Espontaneidade, publicado em O
Instituto, Coimbra, 1866, Antero de Quental faz a defesa do século XVIII
enquanto século de razão contra «vinte séculos de ignorância e escravidão»,
assentes no sobrenatural, no misterioso e no milagroso. Ao contrário de toda a
Idade Média, o século XVIII teria sido o da libertação do espírito graças às
obras de Vico, Montesquieu, Voltaire, Rousseau. A
espontaneidade defendida por Antero seria, pois, o que faltaria acrescentar às
conclusões do século XVIII para o completar. E a certa altura do artigo sai-se
com esta:
A Idade Média tinha dito: inspiração, graça, revelação. A
isto respondeu ousadamente o século XVIII: consciência, responsabilidade, vontade. Deus cedeu a palavra ao homem. A humanidade tornou-se responsável pela
sua obra. No fundo da grande e misteriosa página que se chama História, viu-se
esta inesperada assinatura — liberdade.
Até onde? Toda a questão está nesta pergunta. O que há de
voluntário na obra humana? e o que há de fatal, de inconsciente? Esse limite
não o marcou, nem Voltaire, nem Montesquieu, nem Rousseau. Para eles onde há
acção há reflexão por força: à obra precedeu sempre a vontade. Entre as
criações humanas mais primitivas, as primeiras sociedades, os primeiros cultos,
e as organizações contemporâneas, filhas da meditação e livremente debatidas,
não vêem outra diferença senão de tempo e de perfeição relativa. O processo
supõem-no o mesmo: reflexão, experiência, vontade. Dão aos primeiros homens,
obscuros e pequenos no meio de uma natureza impenetrável, a robusta consciência
do homem metafísico de Condillac, formada, engrandecida por mil ciências, mil
vitórias sobre essas inflexíveis forças naturais, mil segredos arrancados à
vida e ao mundo depois de séculos de lutas e dores sem conto. São outros tantos
enciclopedistas, que, nos primeiros dias, argumentam, debatem, e fixam as leis,
os governos, os cultos e as línguas! Os criadores das primeiras ideias são
sábios e filósofos como Descartes e Leibniz! Os chefes das primeiras tribos
precisam da dupla experiência de um Marco Aurélio e de um Machiavel!
Antero de Quental, in Filosofia, org. Joel
Serrão, Editorial Comunicação, Janeiro de 1991, p. 46.
É verdade que Antero, desiludido com o rumo dos acontecimentos, se suicidou à saída do século XIX,
mas também não deixa de ser verdade que, quase ao mesmo tempo, à entrada do
século XX, uns tipos descendentes de escravos inventavam o jazz. A
espontaneidade estava garantida, mesmo que a liberdade permaneça um desafio.
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