domingo, 3 de julho de 2022

DA ESPONTANEIDADE


 

Num artigo intitulado Espontaneidade, publicado em O Instituto, Coimbra, 1866, Antero de Quental faz a defesa do século XVIII enquanto século de razão contra «vinte séculos de ignorância e escravidão», assentes no sobrenatural, no misterioso e no milagroso. Ao contrário de toda a Idade Média, o século XVIII teria sido o da libertação do espírito graças às obras de Vico, Montesquieu, Voltaire, Rousseau. A espontaneidade defendida por Antero seria, pois, o que faltaria acrescentar às conclusões do século XVIII para o completar. E a certa altura do artigo sai-se com esta:

   A Idade Média tinha dito: inspiração, graça, revelação. A isto respondeu ousadamente o século XVIII: consciência, responsabilidade, vontade. Deus cedeu a palavra ao homem. A humanidade tornou-se responsável pela sua obra. No fundo da grande e misteriosa página que se chama História, viu-se esta inesperada assinatura — liberdade.
   Até onde? Toda a questão está nesta pergunta. O que há de voluntário na obra humana? e o que há de fatal, de inconsciente? Esse limite não o marcou, nem Voltaire, nem Montesquieu, nem Rousseau. Para eles onde há acção há reflexão por força: à obra precedeu sempre a vontade. Entre as criações humanas mais primitivas, as primeiras sociedades, os primeiros cultos, e as organizações contemporâneas, filhas da meditação e livremente debatidas, não vêem outra diferença senão de tempo e de perfeição relativa. O processo supõem-no o mesmo: reflexão, experiência, vontade. Dão aos primeiros homens, obscuros e pequenos no meio de uma natureza impenetrável, a robusta consciência do homem metafísico de Condillac, formada, engrandecida por mil ciências, mil vitórias sobre essas inflexíveis forças naturais, mil segredos arrancados à vida e ao mundo depois de séculos de lutas e dores sem conto. São outros tantos enciclopedistas, que, nos primeiros dias, argumentam, debatem, e fixam as leis, os governos, os cultos e as línguas! Os criadores das primeiras ideias são sábios e filósofos como Descartes e Leibniz! Os chefes das primeiras tribos precisam da dupla experiência de um Marco Aurélio e de um Machiavel!

Antero de Quental, in Filosofia, org. Joel Serrão, Editorial Comunicação, Janeiro de 1991, p. 46.

É verdade que Antero, desiludido com o rumo dos acontecimentos, se suicidou à saída do século XIX, mas também não deixa de ser verdade que, quase ao mesmo tempo, à entrada do século XX, uns tipos descendentes de escravos inventavam o jazz. A espontaneidade estava garantida, mesmo que a liberdade permaneça um desafio.

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