segunda-feira, 11 de julho de 2022

FALA DO REI LOUCO AO CONDE CEGO

 


GLOUCESTER
Conheço aquela voz.
 
LEAR
Ah, Gonerill com barba branca. Lisonjearam-me como um cão e disseram-me que tinha pêlos brancos na barba, mesmo antes de ter tido pretos. Fingiam concordar com tudo o que eu dizia. Mas a hipocrisia é um crime abominável. Quando a chuva me molhou e o vento me fez tremer, quando o trovão não se acalmou à minha ordem, então compreendi que eram um bando de hipócritas e de aduladores. Disseram-me que eu era tudo; é mentira, não sou imune à malária.
 
GLOUCESTER
Lembro-me bem daquele timbre de voz. Não é o rei?
 
(Ajoelhou-se.)
 
LEAR
Sim, o rei da cabeça aos pés. Vejo como este súbdito treme. Poupo a vida deste homem. Qual foi o teu crime? Adultério? Não morrerás. Morrer por adultério? Não. A carriça também o comete e a pequena mosca dourada fornica diante dos meus olhos. Que a concupiscência prolifere, pois o filho bastardo de Gloucester revelou um amor mais filial pelo seu pai do que as minhas filhas concebidas no leito nupcial. Que haja luxúria, lascívia desenfreada, pois preciso de soldados. Contemplai aquela dama afectada, cujo rosto indica que entre as suas pernas apenas há frigidez, que pretende ser virtuosa, mostrando escrúpulos, e abana a cabeça se ouve falar em prazer. Nem a doninha, nem o garanhão se entregam à luxúria com um desejo mais voluptuoso. Da cintura para baixo são centauros, embora sejam mulheres na parte superior do corpo. Até à cintura são domínio dos deuses, daí para baixo pertencem ao Diabo, é o Inferno, as trevas, o abismo sulfúreo, que queima, abrasa, fede, destrói! Vergonha, miséria, horror! Dá-me uma onça de perfume, bom apotecário, ameniza a minha imaginação. Aqui tens dinheiro para ti.
 
(Dá-lhe flores.)
 
GLOUCESTER
Oh, deixai-me beijar essa mão!
 
LEAR
Deixa que eu a limpe primeiro, cheira a morte.
 
GLOUCESTER
Oh, fragmento aniquilado da natureza! Este grande murro corre para a sua ruína. Conheces-me?
 
LEAR
Lembro-me bem dos teus olhos. Olhas para mim com os olhos semicerrados? Não, bem podes tentar, cego Cupido; não amarei; lê este desafio; repara só na redacção.
 
GLOUCESTER
Mesmo que todas as tuas letras fossem sóis, não poderia vê-las.
 
EDGAR (À parte.)
Se me contassem o que se está passando, não acreditaria; mas é verdade e o meu coração está consternado.
 
LEAR
Lê.
 
GLOUCESTER
Com as órbitas dos olhos?
 
LEAR
Oh, é isso que queres dizer? Nem olhos na cara nem dinheiro na bolsa? Os teus olhos estão num triste estado e a tua bolsa está leve. No entanto, vês como vai o mundo.
 
GLOUCESTER
Sinto-o.
 
LEAR
És louco? Pode-se ver como está o mundo sem olhos. Olha com os teus ouvidos. Vê como acolá a justiça se abate sobre um pobre ladrão. Ouve com os teus ouvidos; com um pequeno malabarismo, já não se sabe qual é o juiz e qual é o ladrão. Viste o cão do lavrador ladrar ao mendigo?
 
GLOUCESTER
Sim, senhor.
 
LEAR
E o escravo fugir do cão? Aí podes observar a grande imagem da autoridade: os servos obedecem ao cão. Tu, miserável bedel, suspende a tua mão manchada de sangue. Porque açoitas essa prostituta? Desnuda as tuas próprias costas. Tu desejas ardentemente gozar do prazer pelo qual a punes. O usurário enforca o trapaceiro. As roupas esfarrapadas deixam ver os vícios. As togas e os casacos de pele tudo escondem. Revestem os pecados de ouro e a poderosa lança da justiça quebra-se sem os atingir; se os revestirdes de farrapos, a palha de um pigmeu os traspassa. Nenhum comete pecado, nenhum, nenhum; dar-lhes-ei poder.
 
(Dá-lhes flores.)
 
Aceita estas flores, meu amigo, que têm o poder de selar os lábios dos acusadores. Arranja óculos e, como os políticos corruptos, finge ver o que não vês. Basta! Tira-me as botas. Com mais força, com mais força. Assim…
 
EDGAR
Ó verdade e insensatez! Sabedoria na loucura!
 
LEAR
Se chorares a minha sorte, dou-te os meus olhos. Conheço-te bem, o teu nome é Gloucester. Deves ser paciente. Chegámos aqui a chorar. Tu sabes que a primeira vez que cheiramos o ar choramos e gritamos. Vou fazer-te um sermão, presta atenção!
 
(Tira a coroa de flores.)
 
GLOUCESTER
Malfadado dia.
 
LEAR
Quando nascemos, choramos porque entrámos neste grande palco de loucos. Este é um bom chapéu. Seria um estratagema astucioso ferrar os cavalos com feltro. Vou experimentar; e quando tiver alcançado esses cunhados sem ser notado, matá-los-ei, matá-los-ei, matá-los-ei!
 
(Lança por terras as flores e espezinha-as.)
 
Shakespeare, in Rei Lear, trad. Margarida Pratas, Publicações Europa-América, s/d, pp. 123-126.


Sem comentários: