O ECLESIÁSTICO
As primaveras impelem o organismo a actos que, numa outra estação, lhe são desconhecidos, e mais do que um tratado de história natural abunda em descrições desse fenómeno entre os animais. Seria de um interesse muito mais plausível recolher algumas das alterações que provoca o instante climatérico nas posturas de indivíduos feitos para a espiritualidade! Mal dispensado da ironia do Inverno, retenho dele, quanto a mim, um estado equívoco, enquanto este não se substitui por um naturalismo absoluto ou ingénuo, capaz de perseguir um gozo na diferenciação de vários talos de erva. Nada no caso actual trazendo proveito à multidão, escapo, para o meditar, para debaixo de algumas sombras de árvores que há pouco tempo rodeiam a cidade: ora, é do seu mistério quase banal que exibirei um exemplo compreensível e impressionante das inspirações primaveris.
Viva foi há pouco a minha surpresa, num local pouco frequentado do Bosque de Bolonha, quando, escura agitação baixa, vi, por entre os mil interstícios de arbustos bons para nada esconder, total e animando-se desde os batimentos superiores do tricórnio até aos sapatos firmados por argolas de prata, um eclesiástico que, afastado de testemunhas, respondia às solicitações da relva. A mim não me agradou (e nada de semelhante serve aos desígnios providenciais) que, tão culpado como um falso escandalizado apropriando-se de um calhau do caminho, eu causasse, através do meu sorriso, além disso de compreensão, um rubor no rosto, por ambas as mãos velado, desse pobre homem, seguramente diferente do determinado pelo seu solitário exercício! O pé vivo, foi-me necessário, para não produzir distracção através da minha presença, servir-me de destreza; e, forte perante a tentação de um olhar dirigido para trás, figurar-me em espírito a aparição quase diabólica que continuava a esfregar o renovo com as suas costelas, à direita, à esquerda, e com a barriga, obtendo um casto frenesim. Tudo, friccionar-se ou estirar os membros, rebolar, deslizar, terminava em satisfação: e parar, perturbado pelo leve prurido causado por algum alto caule de flor na preta barriga das pernas, por entre aquela túnica especial usada com a aparência de que se é tudo para si, inclusive sua mulher. Solidão, frio silêncio esparso na vegetação, percebido por sentidos menos subtis do que inquietos, vocês conheceram os estalidos furibundos de um tecido; como se a noite absconsa nos seus vincos finalmente saísse dele sacudida!, e os choques surdos contra a terra do esqueleto rejuvenescido; mas o energúmeno não tinha porque vos contemplar. Hilário, bastava procurar em si a causa de um prazer ou de um dever, mal explicados por um retorno, diante de um relvado, às cabriolas do seminário. A influência do sopro vernal dilatando suavemente os imutáveis textos inscritos na sua carne, também ele, estimulado por essa perturbação agradável ao seu estéril pensamento, tinha vindo reconhecer, através de um contacto com a Natureza, imediato, preciso, violento, positivo, desprovido de qualquer curiosidade intelectual, o bem-estar geral; e candidamente, longe das obediências e do constrangimento da sua ocupação, dos cânones, dos interditos, das censuras, rebolava, na beatitude da sua simplicidade nativa, mais feliz do que um burro. Que, atingido o objectivo do seu passeio, direito e de uma vez, se tenha levantado não sem sacudir os pistilos e enxugar os sucos pegados à sua pessoa, o herói da minha visão, para reentrar, desapercebido, na multidão e nos hábitos dos eu ministério, é algo que não penso de modo nenhum negar; mas tenho o direito de o não considerar. A minha discrição frente a frente com as brincadeiras pela primeira vez reveladas não tem por recompensa o fixar para sempre como um devaneio de transeunte se aprazeu a contemplar a imagem marcada por um cunho misterioso d emodernidade, ao mesmo tempo barroca e bela?
Stéphane Mallarmé, in Poemas em Prosa, tradução de Diogo Paiva, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2022, pp. 43-45.
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