sábado, 10 de setembro de 2022

A MANUAL FOR CLEANING WOMEN

 


   Já não sei se foi em 2015, ano desta edição de “A Manual for Cleaning Women”, ou em 2016 que o Vítor Rodrigues me deu a conhecer os contos de Lucia Berlin (1936-2004). Há-de ter sido por aí. Li-o com o entusiasmo de quem faz uma grande descoberta, conquistado pela escrita crua e transparente, mas também pela agilidade com que supostamente o biográfico era fintado pela ficção e esta se deixava frequentemente contaminar por aquela. Entretanto, o livro foi publicado por cá, ao qual se seguiram outros dois, e muita tinta correu sobre a escritora norte-americana. Recordo-me de pensar, enquanto a lia pela primeira vez, que nunca tinha lido uma mulher a escrever de um modo tão aberto, tecendo à época comparações com a escritora beat Diane di Prima (1934-2020) e com Grace Paley (1922-2007), conjecturas inadequadas quer pelas comparações, quer pela estúpida tendência para pensar a “escrita no feminino” como uma espécie de gueto no campo da literatura.
   Na verdade, não há muitos escritores com a capacidade que Berlin demonstrou ter de ouvir atentamente o mundo à sua volta fazendo da ficção um registo urgente dessas auscultações. Com uma vida tão rica em experiências e aventuras, não admira que tenha aproveitado esse material para escrever os seus contos. Isto não lhe nega inventividade. Antes pelo contrário, a sua particularidade mais cativante é precisamente o modo como logra moldar o material biográfico resgatando-o do registo meramente confessional, oferecendo-lhe uma dramaticidade que já pouco tem que ver, por exemplo, com a ausência de encenação num Charles Bukowski (1920-1994). Neste, vida e escrita confundem-se. São uma e a mesma coisa. A gente lê-o como se estivesse a vê-lo, acompanhando-o como uma sombra. Em Lucia Berlin, a escrita resulta já de uma encenação do vivido. O que vemos é uma peça, estamos na posição do público que observa um actor, não na do fetichista que espreita pelo buraco da fechadura: «E se os nossos corpos fossem transparentes, como a janela numa máquina de lavar roupa? Quão maravilhoso seria podermos observar-nos» (Do conto “Temps Perdu”).
   Lydia Davis (1947), outra excelente contista, sublinha-lhe o wit e a ironia. O wit é uma forma de humor muito norte-americana, enraizada na verve satírica de Ambrose Bierce (1842-1913), e tem que ver com o modo como a sagacidade se mistura com a mordacidade: «Não podia ir para o paraíso porque era protestante. Ficaria pelo limbo. Preferia ir para o inferno a ficar no limbo, palavra horrível, tipo bimbo, ou pimba, um lugar sem nenhuma dignidade» (Do conto “Stars and Saints”). Resulta de um olhar atento, perscrutador, porventura cínico, à moda dos gregos, capaz de num rasgo desmontar preconceitos e denunciar hipocrisias.
   Os contos desta colectânea oferecem-nos, com peso e medida, algumas dessas frases que, destacadas, dariam aforismos cáusticos, saídos de um leque de personagens estigmatizadas por vícios vários (álcool, droga), num estado de desolação que alterna com instantes de ternura, vivendo as suas vidas de imigrantes excluídos, gente deslocada e isolada, peças defeituosas na linha de montagem do grande sonho americano, vivendo as suas vidas concretas com os problemas concretos que afectam as pessoas concretas: aborto, cancro, psiquiatria, divórcio, incerteza religiosa, «Medo, pobreza, alcoolismo, solidão, são doenças terminais. Na verdade, urgências» (Do conto “Emergency Room Notebook, 1977”).
   Também há momentos de pura felicidade, claro, memórias familiares, relações amorosas (quase sempre falhadas), paixões (quase sempre intensas), o jazz, e uma paisagem humana tão diversa quanto é a da sociedade norte-americana, do velho índio solitário à imigrante mexicana que trabalha nas limpezas, passando por rufiões, foras da lei, rapazes dos gangues, prostitutas, gente sem-abrigo. Que alegria, ler livros em que as personagens não são escritores atormentados com o meio literário nem gente culta que passa a vida em óperas e a ver cinema francês e a discutir música erudita. Mexicanos, sírios, negroes, gente com quem Lucia Berlin conviveu ao longo da vida e nestes contos de algum modo expia: «Talvez isto não seja uma coisa assim tão perigosa, permitir que o passado regresse com o prefácio “ E se?” E se eu tivesse falado com o Paul antes de ele partir? E se eu tivesse pedido ajuda? E se tivesse casado com o H? Aqui sentada, a olhar pela janela a árvore onde agora não há galhos nem corvos, as respostas para cada “e se” são estranhamente reconfortantes. Não podiam ter acontecido, este “e se”, aquele “e se”. Tudo o que de bom ou mau aconteceu na minha vida era inevitável e previsível, sobretudo as opções e as acções que explicam a minha completa solidão» (Do conto “Homing”).

2 comentários:

sonia disse...

Quero vr se enconro este livro aqi no Brasil. Identifiquei-me com a autora por uma frase dela.....

Marina Tadeu disse...

Notícias de Hollywood:

https://deadline.com/2022/09/dirty-films-new-republic-move-forward-on-a-manual-for-cleaning-women-sans-pedro-almodovar-1235115757/