domingo, 13 de novembro de 2022

UM POEMA DE MIYÓ VESTRINI

 


OS MUROS DA PRIMAVERA

Não ensinarei o meu filho a trabalhar a terra
nem a cheirar a espiga
nem a cantar hinos.
Ele ficará a saber que não há riachos cristalinos
nem água límpida para beber.
O seu mundo será de aguaceiros infernais
e sombrias planícies.

De gritos e gemidos,
de secura nos olhos e na garganta
de corpos martirizados que já não conseguirão vê-lo nem ouvi-lo.
Saberá que não é bom escutar as vozes dos que exaltam a cor do céu.

Levá-lo-ei a Hiroshima. A Seveso. A Dachau.
A sua pele cairá pedaço a pedaço face ao horror
e escutará com lástima o pássaro que canta,

                         o riso dos soldados
                         os esquadrões da morte
                         os muros da Primavera.

Ele terá a memória que nós não tivemos 
                          e acreditará na violência
                          dos que não acreditam em nada.

Miyó Vestrini, in Poucas Virtudes / Cidadão Valente, tradução e prefácio de Miguel Cardoso, Barco Bêbado, Março de 2022, p. 36. Do prefácio: «Falei dos dias iguais, e aléns inacessíveis. De arroubos e estremecimentos momentâneos contra um fundo de atrofias. De dias parados, sonhos gorados. Do marasmo depois do desastre. De muros e prisões, mais do que de liberdades ou libertação. Do prosaico, mais do que do lírico. Mas até que ponto estas coordenadas, pela sua própria expressão, e pela qualidade de insistência e intensidade da mesma, são, enquanto poemas, lugar de uma profana exaltação que podemos apelidar, precisamente, de lírica? Em Vestrini, a intimidade — tal como é vivida — é quase sempre uma cama de pregos, e a maternidade uma troca de agressões, um jogo de culpas e incompreensões (coisas que dizem as mães: tu me fais grincer les dents; «Vai à merda»). 

Sem comentários: