segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

UM RELÓGIO ATRASADO

 


   O surrealismo chegou a Portugal com 20 anos de atraso, costuma dizer-se. Assim será se o tivermos em conta a partir do aparecimento do «Grupo Surrealista de Lisboa», em 1948. O “Manifesto Surrealista” surgira em 1924. Em 1942, no entanto, António Pedro (1909-1966) publicara “Apenas uma narrativa”, texto considerado por Jorge de Sena (1919-1978) «uma obra-prima do “romance surrealista”». Não discordo. E já ganhámos uns anitos. Certo é que a crónica retardação portuguesa relativamente ao lá fora, em matéria de artes e doutros desenvolvimentos, há muito vinha sendo denunciada, pelo menos desde que Francisco Xavier de Oliveira (1702-1783) se referiu à pátria lusa como um relógio atrasado pela Inquisição. Acabou condenado, honra lhe seja feita. Na ausência do corpo, que andava por terras britânicas, atearam fogo à efígie em auto-de-fé.
   Foi-se a Inquisição mas não os inquisidores. O mal entranha-se facilmente nas cabeças erradas. Num país desde sempre e ainda hoje curvado à Igreja — veja-se como o actual Presidente da República tem actuado em matéria de pedofilia entre padres e em matéria de eutanásia, para não referir outras promiscuidades subtis de que não nos libertamos —, os 48 anos de ditadura salazarista demonstraram à saciedade a praga inquisitorial que vicia do mais pequeno ao mais alto cargo, com bufos e censura, mais as predicações dos cerejinhas, a trabalharem em conjunto na preservação da ignorância, na conservação do medo, na castração da liberdade.
   É o que temos, diz-se muito à portuguesa naquele encolher de ombros que mostra dificilmente virmos a ter diferente. Talvez também por isso esta sensação desagradável de que, com o ano da desgraça de 2022 a dar as últimas, os melhores livros em português que tive oportunidade de ler são, salvo raras excepções, produto de outro tempo que não este, mas neste resistem, sobrevivem e até se afirmam com indesejável pertinência. Isso justifica que aqui junte estes dois: o primeiro volume das obras recuperadas de Virgílio Martinho (1928-1994), em que se coligem três publicações vindas a lume entre 1958 e 1972, e um poema longo de Vítor Silva Tavares (1937-2015) escrito em Julho de 1963. Portanto, a outra senhora ainda está entre nós. Seja lá sob que forma for, dela não nos livrámos e a actualidade destes dois livros aí está a confirmá-lo.
   Da Companhia das Ilhas recebemos, em Novembro de 2021, o primeiro volume das obras de Virgílio Martinho, aí se recuperando, com prefácio invejável de Luís Miguel Rosa (1984), a novela “Festa Pública” (1958), os contos de “Orlando em Tríptico e Aventuras” (1961) e o conto isolado “Rainhas Cláudias ao Domingo” (1972). São prosas escritas num tom surrealizante, em conformidade com as dinâmicas de grupo que o próprio frequentou. Diz Miguel Rosa: «os seus mundos de contornos esbatidos e de personagens fugazmente gizadas são impregnados duma ambiência absurda que, em vez de atirar à cara da ditadura os seus malefícios, encena as virtudes opostas duma sociedade aberta e livre» (pp. 11-12). Há nisto muito de táctica, mas há também o gozo da expressão que coloca quase invariavelmente no centro das atenções uma personagem aberrante à volta da qual a multidão regozija com espectáculos grotescos. 
   Sociedade do espectáculo em registo de bizarrias e farsas cuja raiz mais profunda será Gil Vicente (1465-1536), para denúncia, em cenários delirantes e gestos escatológicos, de realidades bem concretas: a guerra e seus males (sobretudo em “Orlando”), a miséria social generalizada no microcosmo de uma prostituta (em “Rainhas Cláudias”), a via crúcis revolucionária em “Festa Pública”: «Precisamos só de um pouco de espectáculo e de uma vez por outra a sorte grande» (p. 35). Entretanto já saiu um segundo volume com o romance "O Grande Cidadão" (1963). Ando a lê-lo.
   O “Poema de Amor e Ódio” que a editora Barco Bêbado foi desenterrar é uma pérola para guardar ao lado dos manifestos de Almada Negreiros (1893-1970), das raivas de Álvaro de Campos, ou até — porque não? — d’ “A Invenção do Amor” de Daniel Filipe (1925-1964). Vítor Silva Tavares, já toda a gente deve sabê-lo, foi um escritor obnubilado pela actividade editorial que exerceu com obstinada dedicação. Este poema longo faz prova disso mesmo, escrito à laia de uma declaração de princípios que coloca a um mesmo nível o amor à vida e o ódio à estrutura social que impede a manifestação desse amor erguendo muros entre indivíduos, obstaculizando-lhes o caminho da emancipação, roubando-lhes liberdade. Se falo em Álvaro de Campos é porque dele me lembro ao ler estes versos: «começo este poema com uma forte dose de egoísmo a roer-me a alma / e com um saudável orgulho de ser egoísta e ter alma e algo que a rói» (p. 8). Se falo em Daniel Filipe é pela mesma razão: «socorro! só me resta gritar socorro! eis-me só / na cidade violada sob ocupação» (p. 15).
   Silva Tavares escreve com as referências por si assimiladas, obviamente, venham elas do modernismo, do neo-realismo, do surrealismo ou até do experimentalismo, delas se libertando numa toada sincrética que é, acima de tudo, um grito de raiva individual e uma particular afirmação de combate aos uniformes: «eis a realidade capaz de todo o sonho capaz de todo o mal / capaz de todos os quartos sem vista para o mar / capaz de todas as portas de saída / capaz de todo o sal capaz de todo o vácuo / eis a realidade a parede de cal eu a violarei / com fúria e com sangue eu a violarei / eu a violarei sem investimento no futuro / sem as cócegas das fraternidade sem o mal de espuma das convicções que às vezes até se crêem verdadeiras / eu a violarei ela é a minha amante / eu a violarei eis a minha vingança / eu a violarei porém sem qualquer virtude / meu destino é este de não me conformar» (pp. 41-42). Cumpriu com distinção.

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