domingo, 4 de dezembro de 2022

MORADA

 
Que termine depressa o ano
podre como fruta esquecida
na fruteira rodeada de mosquitos
 
Acabe depressa e seja olvidado
apagado para sempre da história
Também o tempo tem direito
à lei que nos protege da memória
 
Acabe e leve com ele os sonhos
repetindo-se no crânio pesado
das dores intimamente sentidas
 
Que o enterrem por debaixo dos mortos
sirva aí de cama aos ossos
dos dias caninamente roídos
em mercados e feiras
 
Silêncio
precisamos de silêncio absoluto
Desliguem as gargantas com pregões
e os motores da alienação universal
 
Venham depressa os dias vazios
a paz gloriosa dos dissidentes
Com ela eduquemos nossos filhos
para o sucesso da inutilidade
 
Abaixo os bons funcionários
e os quadros de mérito
e as menções honrosas
Abaixo o burocrata cabeça de grelha
e os comités de interruptores
interrompidos a horas certas
 
Precisamos de tudo menos de bolor
Precisamos de unhas partidas
e de olhos onde existam buracos negros
 
Não precisamos de chaves
para portas que possam ser arrombadas
nem de porteiros a espreitar pelas janelas
nem de balcões voltados para dentro
nem de gente que cumpra horários
como se os dias tivessem fim
 
Levem definitivamente este ano
para onde quer que vão apressadamente
Levem-no convosco por inteiro
 
De mãos a abanar
edificarei uma morada
para o amor e para a liberdade
Mais não quero nem preciso

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