sábado, 29 de abril de 2023

O PALHINHAS & CA., N.º 84

 


SIM SENHOR
 
   Em 2016, algumas obras de arte do mais antigo museu do mundo, em Roma, foram revestidas a pedido de Teerão. O presidente Hassan Rouhani estava de visita a Itália e não seria adequado ver nus, mesmo que inanimados. Isto foi depois dos ataques ao jornal satírico Charlie Hebdo, que a 7 de Janeiro de 2015, em Paris, resultaram em 12 mortos às mãos de fanáticos para quem uma caricatura de Maomé justifica execuções sumárias. O chamado Estado Islâmico, se estão lembrados, tinha (tem?) bem vincado esse labor de “limpeza cultural”. Deram cabo de sepulturas para purificar o mundo da idolatria, arruinaram edifícios arqueológicos, túmulos e santuários, cidades inteiras. Em 2001, os talibãs já haviam detonado os budas do vale de Bamiã, no Afeganistão. Nada mais ofensivo do que um gordo em meditação. Ah, desculpem, já não se pode escrever gordo. Agora diz-se enorme.
   Eu ainda sou do tempo, isto pode dizer-se, em que a Vénus de Willendorf era censurada pelo Facebook. Mas aí o que estava mal era o algoritmo, incapaz de distinguir uma escultura com 30 000 anos de exibicionismo e pornografia. Entretanto o algoritmo evoluiu, os homens que o programam também, já só censuram a palavra “maricas”, alguns poemas da grega Katerina Gogou, performances de Dan Graham que mostrem mamilos femininos (masculinos pode ser, o algoritmo percebe a diferença). Aconteceu-me, tenho provas. Assim vão as coisas nas redes sociais, não muito diferentes da vida que fora delas pula e avança.
   A directora de uma escola da Florida, nos Estados Unidos da América, foi obrigada a demitir-se por ter mostrado aos ebúrneos alunos de um 6.º ano uma imagem do David de Michelangelo. Os encarregados de educação não gostaram, acharam ofensivo, uma promoção da pornografia, os anjinhos darem com o nariz no corpo de um homem nu. Voltámos ao Génesis, depois de Adão e Eva haverem comido a maçã. Também os filhos de Noé, escandalizados com a nudez do pai embriagado, se apressaram a tapá-lo. Simplesmente agora deu-se o caso num país onde só este ano já houve 129 ataques envolvendo quatro ou mais mortos. Entretanto já deve ter havido mais. Em 2022, foram 647. Contas por alto. Metam já um coldre à cintura de David, tapem-lhe as partes com uma Glock. Os americanos, no geral, gostam dessas coisas.
   Ora, num ambiente destes não é de admirar que as pessoas fiquem sensíveis e se reúnam e comecem a ler livros e dêem de caras com Agatha Christie e Roald Dahl e Enid Blyton, autores que atentando contra a dignidade dos padrões éticos contemporâneos carecem de ser expurgados nessas páginas pecaminosas que andam por aí de mão em mão, de boca em boca, a ferir susceptibilidades. As comunidades de leitores sensíveis são como a Liga Anti-Alcoólica que Sam Peckinpah tão bem ilustrou em “The Wild Bunch”, manifestam-se em comícios enquanto ao lado as crianças se entretêm lançando escorpiões sobre formigueiros. Se esta gente se mete a ler Camões estamos lixados, aliam-se aos fanáticos do Daesh e dão-nos cabo do património nacional: «gentes enojosas da Turquia», logo no primeiro Canto, «malina gente que segue o torpe Mahamede», «o Mouro pérfido», etc, etc, etc… Queira Deus que não metam as mãos no Dia da Nação, nem se ponham a ler Homero ou o mefistofélico Dante, nem Swift ou Goethe, filhos do demónio.
   Aqui chegados, a pergunta que se impõe é: como chegámos a isto? Anda para aí uma coisa chamada ChatGPT que talvez possa servir de explicação, como exemplo, como comparação, não como causa. A causa é óbvia, trata-se da eterna estupidez humana, primitiva como a crueldade, a substância mais bem distribuída do mundo. Descartes estava errado, não me canso de o dizer, o bom senso rareia onde a estupidez prolifera, com seus tiques censórios e manias de superioridade e estereótipos e lugares-comuns e ideias feitas e preconceitos. Estes fanáticos da purificação, venham de onde vierem, tenham eles a fé que tiverem, revistam-se dos ideais que se revestirem, têm todos em comum uma mesma característica: são inteligência artificial em corpos autênticos. Querem-nos a pensar da mesma maneira, a sua missão é a uniformização do pensamento, porque eles mesmos já estão completa e radicalmente algoritmados. Não têm dúvidas nem espírito crítico, estão programados apenas para o pensamento único. O confronto de ideais, para essa gente, tal como para o ChatGPT (tenho provas, já testei), não existe. E se existe, não deve existir, deve ser cerceado como o faziam na infância aquelas tias chatas que em almoços ou jantares de família impediam discussões à mesa para que pudéssemos conviver na hipócrita paz do Senhor.
   Não há democracia nenhuma, a não ser essa que se ilude com eleições sazonais, neste regime de pensamento único que foi testado com a pandemia e posto em prática com a invasão da Ucrânia pela Federação Russa. É ver no que dá opinar ligeiramente desviado desse politicamente correcto que sempre assenta na condenação de uma parte pela deificação da outra. Nem maniqueísmo isto é, porque o algoritmo da inteligência artificial não admite oposição nem contraditório, é um jogo de manipulação do pensamento para que acabemos curvados, submissos, servis, arrotando sim senhor, sim senhor, sim senhor. Resta-nos uma arma: sermos insensíveis, brutos, sem piedade. Não faz mal, «daqui a cem anos ninguém se lembra», dizia Luiz Pacheco cheio de razão. Há que de uma vez por todas atacar a sensibilidade das pessoas sensíveis, aquelas que, já o poema de Sophia cantava, se arrepiam com galinhas estranguladas deliciando-se com uma canja. Estes hipócritas merecem ser chamados pelo nome, leiam ou não Sophia.
 
Henrique Manuel Bento Fialho
Caldas da Rainha, 03 de Abril de 2023

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