quinta-feira, 11 de maio de 2023

EU NUNCA SONHEI COM LISBOA

 

   Eu nunca sonhei com Lisboa, e sonhar era fácil, desculpa esta dupla incidência cinéfila no texto.
   E isso foi um imbróglio. Não sabia, e não sabia mesmo até há pouco tempo, que não era preciso ser filho do pai ou da mãe para se entrar em Lisboa, até mesmo na escrita, cordata e concordata. Para mim, uns entravam porque tinham nomes que os tornavam célebres antes de o serem, e eu sempre fui fatalista em matéria de nomes. Não esqueço esse poema do Cesariny a Antonin Artaud que é um hino, ao invés, à sua nomenclatura. Outro entravam porque tinham família, gente conhecida, como dizes das meninas-coisa das tuas hirtas Madres.
   Eram todos diversos da minha procedência.
   A mim, primeiro que tudo, faltava-me a biblioteca.
   Não era um Cristo, mesmo de província, mesmo animal cruzado, votado ao sacrifício. O J. L. Borges, nesse aspecto, quando dei por ele, fez-me um mal terrível: era cego mas sabia mover-se por todos os labirintos de Babel e gabava-se disso. Mesmo passando as mil e muitas noites a ler, eu nunca alcançaria o pelotão da frente ou sequer o do meio. Trago uma medalha ganha na primária: sabia o que significava a palavra museu num grupo de quarenta rústicos, o que só vale em termos de anedota.
   O nome, vá que não vá. Mas a biblioteca, senhor?
   Na capital, sem nome e sem biblioteca, como pode alguém avançar no Livro proposto por Blanchot sem ter engolido e deglutido os livros, todos os livros?
   Mas foi pela garganta fina e pouco funda da nossa inteligência culta que me fui enfiando, pouco a pouco, e desenfiado.
   Nunca me interessou a consciência da cultura como arquivo, o seu armazenamento, e disso fazer literatura ou ser dialogante in partibus. O chamado real e as suas ideologias mais imediatas são a maior prova de que estou vivo e posso escrever, sol ou chuva, isso não interessa nada, que, como tu dizes, já dizia a outra. A mudez viva de uma planta ou a fidelidade de um animal de casa não são a minha vida sujeita à sua interpretação ontológica, em prosa ou verso. O meu corpo vive, mas os meus mecanismos funcionais não são uma concepção de vida, são órgãos que podem levar-me à inteligibilidade do mundo do qual faço e não faço parte. Daí em diante é retórica, e eu já me sinto a perder-me nela.
   Não, não vou por aí. Aqui, é este livro.
 
Armando Silva Carvalho, in O Livro do Meio, com Maria Velho da Costa, Caminho, Novembro de 2006, pp. 396-398.

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