Eu nunca sonhei com Lisboa, e sonhar era fácil, desculpa
esta dupla incidência cinéfila no texto.
E isso foi um imbróglio. Não sabia, e não
sabia mesmo até há pouco tempo, que não era preciso ser filho do pai ou da mãe
para se entrar em Lisboa, até mesmo na escrita, cordata e concordata. Para mim,
uns entravam porque tinham nomes que os tornavam célebres antes de o serem, e
eu sempre fui fatalista em matéria de nomes. Não esqueço esse poema do Cesariny
a Antonin Artaud que é um hino, ao invés, à sua nomenclatura. Outro
entravam porque tinham família, gente conhecida, como dizes das meninas-coisa das
tuas hirtas Madres.
Eram todos diversos da minha procedência.
A mim, primeiro que tudo, faltava-me a
biblioteca.
Não era um Cristo, mesmo de província, mesmo
animal cruzado, votado ao sacrifício. O J. L. Borges, nesse aspecto, quando dei
por ele, fez-me um mal terrível: era cego mas sabia mover-se por todos os
labirintos de Babel e gabava-se disso. Mesmo passando as mil e muitas noites a
ler, eu nunca alcançaria o pelotão da frente ou sequer o do meio. Trago
uma medalha ganha na primária: sabia o que significava a palavra museu num
grupo de quarenta rústicos, o que só vale em termos de anedota.
O nome, vá que não vá. Mas a biblioteca,
senhor?
Na capital, sem nome e sem biblioteca, como
pode alguém avançar no Livro proposto por Blanchot sem ter engolido e
deglutido os livros, todos os livros?
Mas foi pela garganta fina e pouco funda da
nossa inteligência culta que me fui enfiando, pouco a pouco, e desenfiado.
Nunca me interessou a consciência da cultura
como arquivo, o seu armazenamento, e disso fazer literatura ou ser
dialogante in partibus. O chamado real e as suas ideologias mais imediatas
são a maior prova de que estou vivo e posso escrever, sol ou chuva, isso
não interessa nada, que, como tu dizes, já dizia a outra. A mudez viva de uma
planta ou a fidelidade de um animal de casa não são a minha vida sujeita à sua
interpretação ontológica, em prosa ou verso. O meu corpo vive, mas os meus
mecanismos funcionais não são uma concepção de vida, são órgãos que podem
levar-me à inteligibilidade do mundo do qual faço e não faço parte. Daí em
diante é retórica, e eu já me sinto a perder-me nela.
Não, não vou por aí. Aqui, é este
livro.
Armando Silva Carvalho, in O Livro do Meio, com
Maria Velho da Costa, Caminho, Novembro de 2006, pp. 396-398.
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