(...)
no centro da cidade fixo o olhar nas aves,
assim desfio o fio do poema, fixo o olhar
nas aves e nada perde vulto, pelo contrário,
distingo claramente o voo circular dos tentilhões
e como as rolas deixam para atrás de si um jorro
branco e os corvos dão à sombra
uma subtileza azul difícil de entrever
mas que está lá, se com minúcia repararmos
e o olhar se adaptar à escuridão da luz
que nos transcende. no fio do poema
também há árvores que estremecem,
o outono leva-lhes as folhas uma a uma,
mas o estremecimento vem-lhes das raízes
e sobre pelos troncos, não é só o vento
que as agita, mas também o mistério,
também quanto guardam no segredo
de antecipar nos meses e nos anos
a ressurreição das suas hastes verdes,
das suas copas, dos seus ramos eternamente
explosivos, das suas vozes plácidas
e contínuas. gosto do furor que vem das árvores,
do equilíbrio solar que prenunciam, do discernimento
com que nos vêm salvar, envolvem-nos
de silêncio e sabem seduzir, delicadamente
enchem-nos o cantil e percorrem connosco
a eternidade, se é a eternidade que buscamos.
às árvores sei que tudo devo, árvores de quando
os ouriços se retraem e dão à fuga um significado,
de quando a infância ainda existia nos meus domínios
e a liberdade era poder olhá-las enfeitiçado.
(...)
Amadeu Baptista, in Último Outono, com fotografias de Maria Manuela Mendes Ribeiro, Edições Afrontamento, Dezembro de 2022, pp. 46-47.
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