Dantes chegava a casa e era como se me
entregasse a uma boca que me mastigava. Agora sou um pedaço de carne entalado
entre os dentes. Pior, num corpo sem língua nem braços nem mãos que tragam palito
à boca para me soltar de tamanho aperto. Fico ali a gerar cáries, um cheiro
fétido insuportável, hálito de bêbado numa madrugada de Verão. Felizmente, têm
estado vendavais óptimos para incêndios. Ainda há esperança. Pode uma chispa de
sol aquecer as lentes e derreter-me os olhos, alastrando ao corpo por contágio,
levando lábios e dentes e tudo. A extinção dos ossos de nada me valeu. Há que fundir
o resto até não ficar mínimo sinal de sangue nas veias, nem um nervo, nem um
músculo, nada. Só pó e cinzas bailando ao som de Wes Montgomery, o invejável guitarrista
a quem saquei meia dúzia de notas para assobiar. Entalado entre os dentes, o
sopro refresca-me e sempre danço um pouco. Nem tudo é mau nesta vida. O pior é
os cheiros e a sensação de estar preso. Melhor fora que me tragassem, que me
tragassem e me expelissem para que pudesse transformar-me em algo mais do que
uma cárie. São tão custosas de tratar, as cáries. Maldito ataque cardíaco que
me traíste aos 45 e não me levaste. Lavaste. Cavaste.
segunda-feira, 5 de junho de 2023
BOCK TO BOCK (1957)
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