segunda-feira, 5 de junho de 2023

BOCK TO BOCK (1957)


 

Dantes chegava a casa e era como se me entregasse a uma boca que me mastigava. Agora sou um pedaço de carne entalado entre os dentes. Pior, num corpo sem língua nem braços nem mãos que tragam palito à boca para me soltar de tamanho aperto. Fico ali a gerar cáries, um cheiro fétido insuportável, hálito de bêbado numa madrugada de Verão. Felizmente, têm estado vendavais óptimos para incêndios. Ainda há esperança. Pode uma chispa de sol aquecer as lentes e derreter-me os olhos, alastrando ao corpo por contágio, levando lábios e dentes e tudo. A extinção dos ossos de nada me valeu. Há que fundir o resto até não ficar mínimo sinal de sangue nas veias, nem um nervo, nem um músculo, nada. Só pó e cinzas bailando ao som de Wes Montgomery, o invejável guitarrista a quem saquei meia dúzia de notas para assobiar. Entalado entre os dentes, o sopro refresca-me e sempre danço um pouco. Nem tudo é mau nesta vida. O pior é os cheiros e a sensação de estar preso. Melhor fora que me tragassem, que me tragassem e me expelissem para que pudesse transformar-me em algo mais do que uma cárie. São tão custosas de tratar, as cáries. Maldito ataque cardíaco que me traíste aos 45 e não me levaste. Lavaste. Cavaste.

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