Além de poesia e ensaio, José Ricardo
Nunes (n. 1964) tem também publicado alguma ficção breve. São disso exemplo os
livros “Alfabeto Adiado” (Deriva, 2010) e “Confissões” (Companhia das Ilhas,
2013), assim como as edições de autor "Uma Viagem à Costa Rica" (Junho de 2010) e "Our Common Butterflies" (Novembro de 2015). O primeiro foi recentemente recuperado numa versão substancialmente retocada
e aumentada. O autor fala, portanto, de um livro novo. E, de facto, é um livro
novo, não só pela extensão, mas também por uma organização que torna ainda mais
ambíguo o vínculo das palavras aos espaços interiores e exteriores convocados
para a acção.
As prosas de “Alfabeto Adiado” (Companhia das Ilhas, Janeiro de
2023), agora agrupadas em dois conjuntos, sempre escritas na primeira pessoa,
oscilam entre o relato de pendor intimista e o poema em prosa, na linha do que
Herberto Helder (1930-2015) concretizou em “Os Passos em Volta” (1963). O
primeiro texto, intitulado “Eu, Em 1963”, desloca-nos precisamente para a data
de edição desse livro, introduzindo-nos num processo de sabotagem da identidade
do narrador que é levado ao limite nos textos subsequentes. Estas narrativas testam constantemente as
fronteiras entre real e ficção, sendo até provavelmente mais correcto afirmar que a
sua força primordial reside na supressão dessas fronteiras. Num texto, só as
palavras têm substância real. O que elas nomeiam surge-nos já sob a forma de
representação.
O primeiro problema que tal premissa nos coloca tem que ver com a relação entre corpo e pensamento, evidenciado no texto com o
título “Correspondências” (p. 39): «aprendi que o pensamento é visceral e pode
aproximar-se da garganta, querê-la para si» (p. 40). A interdependência entre
as duas dimensões oferece ao pensamento uma possibilidade de apropriação dos
órgãos do corpo que é diversa da ideia de um corpo absoluto, na medida em que
só nele o pensamento se processa. Haverá pensamento fora do corpo? As palavras,
que são do domínio da linguagem, a linguagem, que é uma faculdade do
pensamento, são, deste modo, parte integrante do corpo, órgãos a partir dos
quais ele organiza a sua percepção do mundo e no mundo se projecta.
Numa outra
prosa, "O Que O Corpo Já Disse Melhor”, vai-se mais longe: «Temo que o texto
seja apenas um espelho do corpo, uma ilustração» (p. 63). E isto leva-nos a um segundo problema: o da transitoriedade. Se há marca ontológica nestes textos
ela é a da transitoriedade, o ser define-se por uma transformação que torna
paradoxal a tal relação do texto com o corpo, pois se o corpo é transitório, o
texto parece proceder à afixação dessa transitoriedade, isto é, à sua negação,
o que, de certo modo, corresponde à própria negação da natureza do corpo. A
certa altura lê-se: «As pessoas são transitórias, nascem, morrem, deslocam-se
de um lugar para outro, quando se juntam é possível sentir a deslocação do ar,
algo no interior das pessoas começa a tremer e a expandir-se, digo que parece
um clamor» (p. 94). O texto pode, então, ser uma ilustração do corpo, sujeito
ou não à transitoriedade que é própria do corpo.
Talvez a solução para estes problemas resida na noção de não-lugar, cunhada por Marc Augé (1935) em contexto
antropológico. Suponho que o texto enquanto não-lugar possa ser também um lugar de trânsito, sítio
de passagem caracterizado pela superabundância de acontecimentos e pela individualização
das referências. Não será a isto que se alude em “Vladivostoque”?
Sublinho um parágrafo: «Havia a infância. Havia os lugares da infância. Havia
um lance de dados e era a infância. Depois dava-se a volta ao mundo. Fiz muitas
viagens e não tenho muito que contar. Depois houve a minha vida. E a vida é
sempre mais breve do que o lance de dados com que se sonha atingir
Vladivostoque» (p. 71). A proliferação de lugares na segunda parte de “Alfabeto
Adiado” remete-me invariavelmente para essa ideia de texto enquanto não-lugar, pois os lugares referidos são hipóteses da imaginação, aventuras de um corpo que pensa e, por
pensar, pode supor-se a sair da vida como se a vida não fosse a clausura que
nos condena. É que pensar e imaginar e sonhar e escrever são tão parte da vida
como pagar impostos, abastecer a dispensa, levar o carro ao mecânico, esbarrar,
cair ao chão e partir a cabeça.
Em “Sabine”, o gosto pela ambiguidade é notório:
«É estranho que tudo se processe dentro da cabeça. Não há realidade exterior,
concluía. Fechava os olhos e todo eu era uma estrada» (p. 81). Resta saber onde ia
dar a estrada?
2 comentários:
Curioso ainda se associar o pensamento à cabeça…
“pois se o corpo é transitório, o texto parece proceder à afixação dessa transitoriedade, isto é, à sua negação, o que, de certo modo, corresponde à própria negação da natureza do corpo”
e depois, tempos mais tarde, lê-se o mesmo texto e, este, na nossa leitura renovada, mudou… o significado das palavras parece acompanhar a oralidade dos corpos. Acompanhar o tempo.
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