quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A CIGANA

Lia a sina a cada um
Na palma de cada mão;
Não desgraçava nenhum,
Nem lhe tirava a ilusão.

Toda a donzela paria,
Todo o homem navegava;
E nem a moça sofria,
Nem o rapaz naufragava.

Um amigo em cada linha,
Um triunfo em cada dedo;
Nos seus lábios ia e vinha
A reserva dum segredo.

Não se mostra uma paixão
Tal e qual, à luz do dia:
Cobre-se-lhe o coração
Da rede duma ironia.

Mas quem tem penas no peito,
Entende acenos discretos;
Sabe ficar satisfeito
Com afagos indirectos.

E em toda a grande praça
A multidão que a enchia
Vivia daquela graça
E do bem que repartia.

Porque nascera cigana,
Sem fronteiras no sorriso
A sua palavra humana
Conhecia o paraíso.

E ali, mulher, o mostrava
A quem, faminto, o pedia:
A quem, crédulo, o comprava
Pelo preço que valia.

Miguel Torga, Coimbra, 19 de Junho de 1946.

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