O caudal da chamada contracultura não corre em direcções opostas ao da
cultura ordinária, segue curso ora nas margens, ora confluindo para o meio,
certo meio, um meio que tudo integra por tudo lhe ser caro enquanto mais-valia.
Assim foi quando o punk passou a ser
moda, quando a poesia cedeu à retórica propagandista e publicitária, quando os
movimentos de ruptura na arte, engolidos pelo mercado, começaram a ser
comercializados a peso de ouro. Focos de resistência existirão sempre, ocupando
o seu espaço por direito próprio, aqui e acolá assimilado ou absorvido pelas
correntes dominantes, opondo-se a estas quase tão-somente pela recusa de ceder
ao convencional. Talvez nem se trate de recusa. Melhor é quando se trata de
indiferença, passar ao lado de costas voltadas, aí o gesto inconvencional
adquire a forma de imperativo categórico, não é por obrigação, é dever, naquele
sentido do termo que se confunde com desinteresse: não sejas livre senão pela
recompensa de seres livre.
Entre o dadaísmo no início do século XX (Hugo Ball inaugurou o Cabaret Voltaire em 1916) e a publicação do primeiro manifesto surrealista, em 1924, há uma sequência lógica por demais aprofundada, a qual não encontra desvios de monta no advento da geração beat no final da década de 1940. Estas movimentações ligam-se por ângulos diversos, tendo porventura o mais relevante de todos um carácter sociopolítico: a resposta oferecida pelos jovens da época às dúvidas colocadas por duas Grandes Guerras (a primeira entre 1914 e 1918, a segunda entre 1939 e 1945). A matriz Dada, aos ombros do futurismo e do modernismo, deu os seus frutos, entre os quais a geração beat é, sem grande espaço para discussões, um deles. Manuel L. Grossman adianta isso mesmo: «Dada era um símbolo multiforme do niilismo moderno: era, para LeRoi Jones, o “Black Dada Nihilismus”, para Allen Ginsberg, a recordação de saladas de batata lançadas aos conferencistas do CCNY falando de Dada, e, para Lawrence Ferlinghetti, a notificação das absurdidades de cada dia da vida.» (Citado por Henri Béhar e Michel Carassou em “Dada – História de uma Subversão”).
Dois livros recentemente publicados permitem-nos perceber com clareza algumas afinidades estéticas entre a (anti)literatura dadaísta e a produção mais ou menos anárquica dos beatniks, a despeito de radicais dissemelhanças entre os respectivos autores. Melchior Vischer, nascido Emil Walter Kurt Fischer (1895-1975), é apresentado na introdução de David Vichnar a “Trespasse Instantâneo do Cérebro – Um romance de inquietante alta rotação” (Barco Bêbado, tradução de António Gregório e Joana Jacinto, Março de 2023) como «o representante pioneiro do movimento dada em Praga». Já Bob Kaufman (1925-1986) surge no prefácio de Raymond Foye à reunião num só volume dos textos “Manifesto Abomunista” (1959), “Segundo Abril” (1959) e “Será que a mente secreta sussurra?” (1959) (Barco Bêbado, tradução de António Gregório e Joana Jacinto, Setembro de 2022) como um poeta beat «criminosamente esquecido». No domínio do esquecimento, também se assemelham. Vischer não aparece sequer referido no ensaio supracitado de Béhar e Carassou. No mais, a biografia destes dois é díspar como o dia da noite. Se tal pouco importa para o caso, adiantemos apenas que Kaufman nunca se desviou do caminho que Vischer, seja lá porque razão for, a certa altura atraiçoou.
Importam os textos, recuperados agora com enquadramentos históricos e biobibliográficos raramente encontrados na edição portuguesa (além da introdução de David Vichnar, o livro de Melchior Vischer traz ainda as notas de Tim König da versão inglesa que serviu de base à presente tradução, assim como um desdobrável com textos do alemão Peter Bouscheljong traduzidos por Ana Isabel Soares). O romance de Vischer é uma paródia da via-sacra em afinação iconoclástica, narrada em prosas curtas sem fio condutor identificável. Lê-se como um diário de viagens alucinadas, aparentemente sem nexo, sugerindo camadas de sentidos subentendidos que, em certos casos, as notas finais aclaram. Repleto de aglutinações, jogos de palavras, experiências lexicais, aproxima-se surpreendentemente do que Joyce elaborou de um modo monumental em “Ulysses” (1922). O romance de inquietante alta rotação foi originalmente publicado em 1920. Há momentos verdadeiramente hilariantes, outros são lanças atiradas à cabeça do leitor: «Na capital espanhola, após comprar mil choques de cigarros, porque ainda tinha ovos no pensamento, correu para Valladolid. Aí, junto ao túmulo de Colombo, ajoelhou-se e disse em voz alta, pela primeira vez sem tolices, nem gozação, honesto, imenso: AO AMAR A HUMANIDADE, TENHO DE ODIAR OS HUMANOS.»
Já os três textos de Bob Kaufman coligidos pela Barco Bêbado revelam-nos um espírito nómada, liberto de quaisquer constrangimentos, explorador de formas diversas e dispersas disparando em múltiplas direcções. O “Manifesto Abomunista” é texto de combate programático: «OS ABOMUNISTAS COSPEM ANTI-POESIA POR RAZÕES POÉTICAS E FRINKAM.» A conversa supra acerca do meio não era por acaso: «O Abomunismo foi fundado por Barrabás, inspirado pelas suas últimas palavras: “Eu queria estar no meio, Mas afastei-me demasiado.”» Curioso como também aqui emergem as narrativas da civilização judaico-cristã, denunciando-se uma herança cultural assente nos pilares da mentira e do poder para subjugação de povos e amestramento de consciências. Não se dizia Breton convencido de que «a História, tal como tem sido escrita, é uma trama de perigosas infantilidades»? O propósito é, portanto, o da transformação, conquanto o método seja o da libertação, tal como seria o de Cristo e o de outros mártires, pelo que não devemos estranhar a epígrafe inicial no texto “Segundo Abril”: «Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade.» (Romanos 12) Outra versão seria: «Não vivam de acordo com as normas deste mundo, mas transformem-se, adquirindo uma nova mentalidade.»
“Será que a Mente Secreta Sussurra?”, o terceiro de três textos de Kaufman recuperados, é um longo monólogo sem pontuação (novamente Joyce a atravessar-se no caminho) matizado de múltiplas referências que nos transportam pelos «pântanos germânicos de Hitler» até ao «corpo morto da puta da cultura da Europa», para chegarmos «aos crepúsculos sombrios da Toscânia onde italianos à luz do archote esculpiram a vida em montanhas de mármore enterrados até à cintura em cabeças cortadas de papas sanguinários em guerra com deus pelas relíquias de roma para se instalarem em esplendorosos túmulos». Mais palavras para quê? O texto fala por si, na sua vertiginosa exposição de uma história mal contada, quase invariavelmente fixada e propagada pelos actores vitoriosos, aqueles que criminosamente se impuseram ao mundo submetendo-o às suas gramáticas. Uma literatura que se oponha ao fluxo ordinário da cultura reinante só pode começar por aqui, pela subversão das regras que enformam uma língua e espartilham o pensamento.
Entre o dadaísmo no início do século XX (Hugo Ball inaugurou o Cabaret Voltaire em 1916) e a publicação do primeiro manifesto surrealista, em 1924, há uma sequência lógica por demais aprofundada, a qual não encontra desvios de monta no advento da geração beat no final da década de 1940. Estas movimentações ligam-se por ângulos diversos, tendo porventura o mais relevante de todos um carácter sociopolítico: a resposta oferecida pelos jovens da época às dúvidas colocadas por duas Grandes Guerras (a primeira entre 1914 e 1918, a segunda entre 1939 e 1945). A matriz Dada, aos ombros do futurismo e do modernismo, deu os seus frutos, entre os quais a geração beat é, sem grande espaço para discussões, um deles. Manuel L. Grossman adianta isso mesmo: «Dada era um símbolo multiforme do niilismo moderno: era, para LeRoi Jones, o “Black Dada Nihilismus”, para Allen Ginsberg, a recordação de saladas de batata lançadas aos conferencistas do CCNY falando de Dada, e, para Lawrence Ferlinghetti, a notificação das absurdidades de cada dia da vida.» (Citado por Henri Béhar e Michel Carassou em “Dada – História de uma Subversão”).
Dois livros recentemente publicados permitem-nos perceber com clareza algumas afinidades estéticas entre a (anti)literatura dadaísta e a produção mais ou menos anárquica dos beatniks, a despeito de radicais dissemelhanças entre os respectivos autores. Melchior Vischer, nascido Emil Walter Kurt Fischer (1895-1975), é apresentado na introdução de David Vichnar a “Trespasse Instantâneo do Cérebro – Um romance de inquietante alta rotação” (Barco Bêbado, tradução de António Gregório e Joana Jacinto, Março de 2023) como «o representante pioneiro do movimento dada em Praga». Já Bob Kaufman (1925-1986) surge no prefácio de Raymond Foye à reunião num só volume dos textos “Manifesto Abomunista” (1959), “Segundo Abril” (1959) e “Será que a mente secreta sussurra?” (1959) (Barco Bêbado, tradução de António Gregório e Joana Jacinto, Setembro de 2022) como um poeta beat «criminosamente esquecido». No domínio do esquecimento, também se assemelham. Vischer não aparece sequer referido no ensaio supracitado de Béhar e Carassou. No mais, a biografia destes dois é díspar como o dia da noite. Se tal pouco importa para o caso, adiantemos apenas que Kaufman nunca se desviou do caminho que Vischer, seja lá porque razão for, a certa altura atraiçoou.
Importam os textos, recuperados agora com enquadramentos históricos e biobibliográficos raramente encontrados na edição portuguesa (além da introdução de David Vichnar, o livro de Melchior Vischer traz ainda as notas de Tim König da versão inglesa que serviu de base à presente tradução, assim como um desdobrável com textos do alemão Peter Bouscheljong traduzidos por Ana Isabel Soares). O romance de Vischer é uma paródia da via-sacra em afinação iconoclástica, narrada em prosas curtas sem fio condutor identificável. Lê-se como um diário de viagens alucinadas, aparentemente sem nexo, sugerindo camadas de sentidos subentendidos que, em certos casos, as notas finais aclaram. Repleto de aglutinações, jogos de palavras, experiências lexicais, aproxima-se surpreendentemente do que Joyce elaborou de um modo monumental em “Ulysses” (1922). O romance de inquietante alta rotação foi originalmente publicado em 1920. Há momentos verdadeiramente hilariantes, outros são lanças atiradas à cabeça do leitor: «Na capital espanhola, após comprar mil choques de cigarros, porque ainda tinha ovos no pensamento, correu para Valladolid. Aí, junto ao túmulo de Colombo, ajoelhou-se e disse em voz alta, pela primeira vez sem tolices, nem gozação, honesto, imenso: AO AMAR A HUMANIDADE, TENHO DE ODIAR OS HUMANOS.»
Já os três textos de Bob Kaufman coligidos pela Barco Bêbado revelam-nos um espírito nómada, liberto de quaisquer constrangimentos, explorador de formas diversas e dispersas disparando em múltiplas direcções. O “Manifesto Abomunista” é texto de combate programático: «OS ABOMUNISTAS COSPEM ANTI-POESIA POR RAZÕES POÉTICAS E FRINKAM.» A conversa supra acerca do meio não era por acaso: «O Abomunismo foi fundado por Barrabás, inspirado pelas suas últimas palavras: “Eu queria estar no meio, Mas afastei-me demasiado.”» Curioso como também aqui emergem as narrativas da civilização judaico-cristã, denunciando-se uma herança cultural assente nos pilares da mentira e do poder para subjugação de povos e amestramento de consciências. Não se dizia Breton convencido de que «a História, tal como tem sido escrita, é uma trama de perigosas infantilidades»? O propósito é, portanto, o da transformação, conquanto o método seja o da libertação, tal como seria o de Cristo e o de outros mártires, pelo que não devemos estranhar a epígrafe inicial no texto “Segundo Abril”: «Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade.» (Romanos 12) Outra versão seria: «Não vivam de acordo com as normas deste mundo, mas transformem-se, adquirindo uma nova mentalidade.»
“Será que a Mente Secreta Sussurra?”, o terceiro de três textos de Kaufman recuperados, é um longo monólogo sem pontuação (novamente Joyce a atravessar-se no caminho) matizado de múltiplas referências que nos transportam pelos «pântanos germânicos de Hitler» até ao «corpo morto da puta da cultura da Europa», para chegarmos «aos crepúsculos sombrios da Toscânia onde italianos à luz do archote esculpiram a vida em montanhas de mármore enterrados até à cintura em cabeças cortadas de papas sanguinários em guerra com deus pelas relíquias de roma para se instalarem em esplendorosos túmulos». Mais palavras para quê? O texto fala por si, na sua vertiginosa exposição de uma história mal contada, quase invariavelmente fixada e propagada pelos actores vitoriosos, aqueles que criminosamente se impuseram ao mundo submetendo-o às suas gramáticas. Uma literatura que se oponha ao fluxo ordinário da cultura reinante só pode começar por aqui, pela subversão das regras que enformam uma língua e espartilham o pensamento.
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