sábado, 12 de agosto de 2023

PEDRO DE PORTUGAL PARA A MORTE

 


(...) Perguntas-me o que quero desta mansão escura? O rei de Portugal vem buscar aquilo que ao reino pertence e que tu com descaro lhe roubaste. Não sabes do que falo? Pois escuta. Em Portugal o rei está só! Não tem rainha! Não fossem as lembranças do passado e da sua princesa e já se teria apagado. Por isso tu restituirás o que roubaste a Portugal! Sim, tu, pavorosa besta, que andas a pilhar às portas dos lugares. Deixas o cego sem guia, a criança de peito sem mãe, a mãe sem esposo. Não tens pejo? Calas-te? Voltas-me as costas? Ouve, ladra descarada, de cabelo de palha e olhos esburacados! Olha-me, megera com  pés de cabra e ossos roídos de sede. Não te largo. Vou atrás de ti até aos infernos, mordo-te os ossos, desconjuro-te as formas. Tu não sabes o que custa ao rei de Portugal suportar a solidão em que vive. Aqui e agora me darás a bonina! Dizes que sim com a cabeça? Ainda bem. Talvez de poupe à chibata. És feia, repelente, asco e triaga, mas compreendo-te. Olha-me com esses dois buracos escuros! Assim mesmo, de frente, no vazio da escuridão, sem medo. Talvez te desculpe. Sabes porquê? Também tu te apaixonaste pela linda Inês; também tu a quiseste junto de ti, protegida dos olhos do mundo. Como eu te compreendo. Não há seda mais macia, nem esmeralda mais cristalina. Pois não? Assentes com a cabeça? Dizes que sim? Pois é. Dá-me a tua mão para eu lhe tocar. Partilhas comigo a paixão por Inês. És quase minha mana. Isso! Dá-me as tuas mãos. Que gelo, santa Maria val! Aquece-te, vá, ao calor das minhas. Não tenhas medo. As tuas mãos são irmãs das minhas. (...)

António Cândido Franco, in Autos do Fogo Analógico - cenas de teatro, Auto do Rei Louco - Os Cães Vermelhos, Editora Licorne, 2012, pp. 40-41.

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