— Minha pele de cobra abençoada; meu sangue de inércia em movimento; minha inteligência pária para o valor utilitário do Mundo, para a economia manifesta no Mundo, para este nosso Mundo, de hoje e sempre (que se lixe, que se lixem...); onde nos comemos uns aos outros, como antropófagos e hermafroditas; pobre Mundo decrépito, pobre Deus envergonhado por toda esta miséria, corpos de cicatrizes, furúnculos, bexigas-doidas, sarampo, escrofuloso, tímpanos átonos, pedra nos rins, cavernas nos pulmões, sangue derramado, na guerra ou na paz; pobre Mundo às avessas e aos trambolhões, com pocilgas e merda por todos os cantos, com hospitais e meretrizes, com o cálculo vectorial e a poesia do Cântico dos Cânticos, com a sabedoria de séculos e uma escola com o retrato do Primeiro-Ministro pregado na parede; pobre Mundo que não estoiras, que não rompes a couraça do sistema solar, que não dás finalmente as duas piruetas que mudariam tudo, que fariam de nós, homens de palmo e meio, com moedas de lata, corações artificiais, ideias magníficas na cabeça, invenções a todo o instante, o segredo do domínio da natureza (pontes, canais, carris, aeroplanos, uma esfera cortada aos quadradinhos, mapas na cabeça, rios na cabeça, ideias na cabeça, justiça e liberdade na cabeça, existência e essência na cabeça, intestinos na cabeça, amor e morte na cabeça; pobre Mundo, quem te acode?!...
Raul de Carvalho, in Poesia 1949-1958, Ulisseia, Junho de 1965, p. 128.
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