segunda-feira, 14 de agosto de 2023

UM POEMA DE A. M. PIRES CABRAL

 


VITIS VINIFERA
OU MÚSICA NO VINHO
 
1
 
Em vez de furar o ar em busca de horizonte,
a videira ama o rés da terra, prefere a companhia
dos homens à das nuvens e das aves.
 
Prefigura dessa forma o vinho que dará:
longo, alastrando, amparando-se
aos arames da consolação.
 
2
 
Mas há mais diferenças. Por exemplo,
as árvores não são dotadas de voz
e só o vento as obriga a desfiar
sussurros longos e lamentações.
 
Não assim a Vitis vinifera.
Escutando bem, conseguimos pressentir
na silenciosa circulação da seiva
prenúncios da música que um dia
desaguará no vinho
em delta.
 
3
 
Em resultado disso, quando o vinho eclode,
ouve-se nele um qualquer instrumento,
indeciso, rebelde e misterioso,
tocando em surdina uma música propícia
como a que jorra redonda, licorosa,
de um  saxofone e alastra na penumbra —
 
— música que tem poderio
contra fantasmas e remove paixões.
 
4
 
Finalmente, ao fim de sete décadas,
depois de ter visto tudo o que havia para ver
(incluindo as mil máscaras do vinho)
e ouvido tudo o que havia para ouvir
(incluindo as mil variações da sua pauta)
e interrogado tudo o que havia para interrogar
(incluindo respostas já dadas sem sucesso),
 
creio ter descoberto
que o instrumento de que acima se fala
é simplesmente um par de castanholas
que o vinho percute e repercute
e a cujos estalidos nós dançamos
ou, se a dança não nos entusiasma,
tamborilamos com os dedos no tampo da mesa.
 
Bem vistas as coisas, tinha mesmo de ser
um instrumento assim elementar
a habitar o vinho —
 
— ele próprio um líquido tão próximo
da simplicidade original.
 
A. M. Pires Cabral, in Frentes de Fogo, Tinta-da-China, 2019, pp. 63-66.

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