sexta-feira, 25 de agosto de 2023

VIDRO, IRONIA E DEUS

 


   Existem três livros de Anne Carson (1950) traduzidos para português. Todos editados pela não (edições), são eles: “Vidro, Ironia e Deus” (tradução de Tatiana Faia, 2.ª edição, 2022), “Autobiografia do Vermelho – um romance em verso” (tradução de João Concha e Ricardo Marques, 2.ª edição, 2017) e “A Beleza do Marido – um ensaio ficcional em 29 tangos” (tradução de Tatiana Faia, 2.ª edição, 2020). São obras que permitem entender a complexidade da autora canadiana, praticante de uma poesia por vezes considerada obscura, multímoda e sem formas determinadas, adaptável a diferentes géneros que excede como líquido penetrando as frestas de uma parede. Basta atentarmos aos subtítulos supracitados para concluirmos que se trata de uma poesia sem preocupações de classificação, superando categorias e suplantando-as através de um processo que tem na colagem, na intertextualidade e na assimilação de referências as suas armas mais eficazes. Não há gavetas, rótulos, nem compartimentos estanques que permitam arrumar esta poesia contracorrente. Curiosamente, numa autora que logra o reconhecimento de um público alargado e da crítica mais exigente. Refere-se amiúde que foi a primeira mulher a ganhar o Prémio T. S. Eliot, o que aconteceu em 2001 com “A Beleza do Marido – um ensaio ficcional em 29 tangos”.
   A leitura recente de “Vidro, Ironia e Deus”, originalmente publicado em 1995, tornou-me clara, mais uma vez, a extraordinária capacidade de Carson para manter congruência discursiva cruzando modelos. As seis divisões deste volume correspondem a seis modos distintos de abordar temáticas específicas, jamais se refreando a pena em favor de uma qualquer ideia de transparência. A complexa oposição entre sagrado e profano, espírito e corpo, surge-me como tema nuclear, ainda que disseminando-se em diversos assuntos correlacionados. Em “O Ensaio de Vidro”, por exemplo, temos um longo poema tingido pela leitura de “As Obras Completas de Emily Brontë” e pela relação da autora com os progenitores e um antigo amante, mas focado em algo mais profundo e misterioso do que as vivências domésticas e quotidianas. Esse algo que vai além da superfície são as visões matinais a que a autora dá o nome de nus, resultantes da prática da meditação.
   Esta intersecção da vida pessoal com leituras e trabalho literário é comum em Anne Carson, não servindo este para uma representação daquele tanto quanto ambos parecem embrenhar-se no momento da escrita. A nudez corresponde a desvelamento, que nunca é total ou absoluto, muito menos confessional, atingindo momentos de grande estranheza, violência, erotismo, onirismo. Os versos de “O Ensaio de Vidro”, de resto, enviaram-me para “A Beleza do Marido”, também ele chamado de ensaio, onde Carson reflecte a experiência do divórcio. «Uma ferida exala luz própria», diz-se logo no primeiro verso desse livro, dedicatória em que se fala igualmente de «um adiamento em vidro», o que leva a pensar nesse poder outrora conferido aos vitrais que era o de, ao mesmo tempo, protegerem os fiéis da luz exterior e material sem impedirem a iluminação interior e espiritual.
   Estes poemas são ensaios e os ensaios são, neste caso, obras literárias que combinam memórias pessoais, experiências íntimas, cogitações académicas, dissertações sobre questões diversas, drama, tradução, romance, humor. No conjunto intitulado “A Verdade Sobre Deus”, composto por poemas mais curtos e autónomos do que é frequente, a ironia impõe-se com extrema acutilância. «A minha religião não faz sentido / e não me ajuda / por isso a pratico», diz-se logo no início do poema “A Minha Religião”. Deus não é aqui interpretado ou representado sob diapasão niilista ou céptico, muito menos segundo uma qualquer perspectiva teológica. A ser alguma coisa, é mais um elemento literário entre outros possíveis. Enquanto tal, está ligado a tudo como qualquer outra coisa. É como uma dessas línguas mortas a que Carson, classicista de formação, se dedicou academicamente.
   Da formação clássica, colheu a autora de “Vidro, Ironia e Deus” a noção de que, em matéria de literatura, a originalidade é uma miragem. Tradutora de Sófocles, de Eurípedes e de Safo, acerca de quem elaborou uma tese de doutoramento, tem concebido as suas próprias versões de algumas tragédias gregas. Esta poesia carrega, em si mesma, algo de dramático, na medida em que ao percorrê-la percebemos ser mais importante o processo que leva às conclusões do que as conclusões em si mesmas. No segmento intitulado “Homens na TV” isso fica especialmente claro, com Heitor, Artaud, Sócrates, Safo, a servirem de personagens em enunciados que aprofundam um raciocínio anunciado logo na primeira premissa: «A TV é um exemplo clássico. // (…) // Um exemplo clássico de quê. // Um exemplo clássico de uma estirpe de crueldade» (p. 71).
   “Vidro, Ironia e Deus” inclui ainda “A Queda de Roma: Um Guia de Viagem”, poema sequência em fragmentos curtos que ecoam o resultado de uma expedição à cidade fundadora da religião católica. Anna Xenia é a padroeira desta festa em torno do problema da santidade. Seguem-se o “Livro de Isaías”, poema de contornos heterodoxos onde se ensaia um irónico diálogo entre o profeta e Deus, e o ensaio em prosa intitulado “O Género do Som”. Aqui é a vertente feminista da obra de Carson a vir à tona, numa reflexão acerca da associação do som feminino à desordem, à morte, à monstruosidade, tácticas da cultura patriarcal para «pôr uma porta na boca feminina». Os inúmeros exemplos fornecidos são inescapáveis e só este ensaio justificaria uma leitura atenta e aprofundada. Talvez não fosse má ideia publicá-lo, no futuro, isoladamente.

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