domingo, 17 de setembro de 2023

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #39

 


Começamos a morrer no momento em que somos concebidos, não sendo desdenhável que só comecemos verdadeiramente a pensar quando damos por isso. Até lá, aprendemos a ler e a escrever, tacteamos o mundo, fazemos contas, imaginamos amigos e ficcionamos a realidade. A descoberta da morte talvez corresponda à descoberta do pensamento. É nesse momento, nesse preciso instante, que nos questionamos sobre o sentido: o que fazemos aqui, neste mundo? Porque e para quê nascemos? Haverá resposta? Que sentido faz nascer para morrer? Qual o valor de uma vida humana? Porque perdemos tempo a fazer coisas se, dentro em breve, deixaremos de desfrutar daquilo que fazemos? Que proveito retira alguém de uma descoberta como esta? Vem a seca, uma trovoada, o relâmpago, vem um incêndio, um tremor de terra, vem o acaso, e já éramos. Eis o absurdo, eis-nos enredados na teia da dúvida, o sem sentido por horizonte. É para lá que olhamos, sentados à beira do abismo que impele o ser para a morte.

Albert Camus (1913 – 1960) diz que «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio.» Aceitar o suicídio enquanto problema filosófico recentra o pensamento na sua matriz fundadora, não sendo tão relevante determinar porque se mata uma pessoa como parece ser a hipótese dela não se matar. De facto, se vamos morrer, se damos por adquirido esse fim, porque nos mantemos vivos? Porque não nos matamos, antecipando o inevitável? Porque insistimos na vida? Há pessoas que abdicam de viver pelas mais diversas razões, umas cortando radicalmente com a vida, outras apartando-se lentamente, recolhendo-se num isolamento que equivale a morrer. São pessoas que se apagam. Outras há que a tudo se sujeitam para se manterem vivas, suportando dores, sacrificando-se, tudo fazendo para evitar a morte. Gostarão assim tanto de viver? Será por amor à vida que se sacrificam, sabendo, lá está, quão parcos serão os louros do seu esforço? Mesmo sabendo que a vida é efémera e a morte certa, há pessoas que tudo fazem para se conservarem vivas. Até morrerem. «Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar», afirma Camus. É verdade. Mas será o hábito assim tão forte, tão mais determinante do que a lógica do pensamento?

Talvez a esperança, essa fantasia cómica, sirva de resposta. É por ela que chegamos aos deuses, fintando o destino. A esperança é cartão-de-visita para o Carnaval da vida eterna, a vida num além incognoscível, apreensível apenas através da fé, algo que está para os adultos como a imaginação para as crianças. A fé, o estado mais avançado da fantasia cómica a que chamamos esperança, é muito útil a quem se dispõe a existir sem viver. Para quê desesperar diante da finitude? Porquê tanto incómodo com a efemeridade? Camus fala de um desejo de unidade, isto é, da necessidade sentida por qualquer homem de oferecer ordem ao caos em que se apanha imerso. Existir, a consciência de que estar vivo é estar à morte, é, sem dúvida, o equivalente a mergulhar no caos, como o corpo enrolado nas ondas que procura a sua natural verticalidade. O desejo de unidade, a nostalgia da unidade, não é senão o pensamento que aspira à sua negação, um pensamento anterior ao pensamento, como se ainda fosse possível organizar a confusão do mundo de que somos parte integrante.

“O Mito de Sísifo” não nos ensina a aceitar pacificamente a nossa condenação, nenhum interesse há em dizer a um homem: conforma-te. «É preciso imaginar Sísifo feliz», conclui Camus. Este Sísifo feliz corresponde já ao homem revoltado«todas as revoluções são metafísicas» —, cuja lógica de pensamento e, por consequência, de acção, já não é a do ser que se amedronta com o fim a que está destinado, antes aceitando-o com a mesma alegria com que se aceita o nascimento e se parte para a criação. «Viver é fazer viver o absurdo», acrescenta, viver fazendo viver, multiplicando a vida. Proponho, portanto, minhas filhas, que considereis o «aventureiro do quotidiano» como aquele que forma a sua própria moral na multiplicidade de experiências que vai tendo, tantas e tão diversas a ponto de tornar absurda a própria consciência da morte. A pergunta deixará de ser “porque não nos matamos”, para passar a ser “porque não vivemos o máximo possível de experiências”. Isto: porque evitamos os riscos que o caos oferece e a vida propõe? Porquê deixar de viver o possível com o pensamento no impossível? A alegria da finitude está na poesia que oferecemos ao quotidiano, poesia no seu sentido originário que é o de fazer e criar. «Havia em Atenas um templo consagrado à velhice. Levavam-se lá as crianças.» Não era má ideia.

1 comentário:

CCF disse...

Gostei tanto.
Obrigada
~CC~