domingo, 3 de dezembro de 2023

NÓDOA

 
"Também no Ocidente a jogada do Hamas tem colhido frutos. Tantos que até gays e queers pela Palestina saíram em festa, mesmo sabendo-se que numa rua de Gaza (ou da Cisjordânia) não sobreviveriam um dia. Manifestações gigantescas. A Palestina aos palestinianos, from the river to the sea, entoam, e enquanto isso falam de dois Estados. As imagens de destruição, o número de mortos avançados, sobretudo as mortes de crianças, vêm gerando uma valente onda – não tenhamos medo das palavras – anti-israelita."

Ana Cristina Leonardo, no Público.
 
   Com este parágrafo, Ana Cristina Leonardo conseguiu pôr-se a par de uma Maria João Marques ou de uma Rita Maria Matias em matéria de densidade intelectual. Há aqui raciocínios inesperados, de tão básicos. Desde logo a ideia implícita na primeira frase de que o Ocidente (qual? quem? onde?) desculpabiliza ou relativiza os actos terroristas do Hamas. Razões que justifiquem tal argumento não há, a não ser as críticas veementes à resposta de Israel que vamos observando em inúmeras manifestações populares (inclusive de judeus) mas, infelizmente, sem repercussão no discurso oficial dos governos. Aquilo a que Leonardo chama Ocidente são os EUA e a UE, cujos governantes, na sua maioria, vêm caucionando o terrorismo de Estado israelita.
   Leonardo queixa-se da imposição do pensamento único, invocando o estado miserável de debate público aquando da invasão da Ucrânia pela Federação Russa, fazendo agora exactamente aquilo que critica e criticava, ou seja, adoptando uma perspectiva unilateral e maniqueísta deste conflito: Hamas = maus / Israel = bons. Ora, não poderemos adoptar apenas uma perspectiva humanista que se manifeste contra a guerra e pelo direito à autodeterminação dos povos? As críticas a Israel colocam-nos do lado do Hamas? Desde quando? Porquê?
   Completamente ridícula é a argumentação subsequente, a qual me remete para uma frase muito popular geralmente atribuída a Voltaire (parece que é de Evelyn Beatrice Hall): "Posso não concordar com nenhuma das tuas palavras, mas defenderei até à morte o direito de as dizeres." Segundo a lógica de Leonardo, gays e queers não deviam criticar os métodos de Israel porque o Hamas fundamenta-se numa ideologia homofóbica. Mais uma vez, a lógica de raciocínio praticada é aquela que se critica. Para Leonardo criticar Israel é estar do lado do Hamas, tal como para outros criticar a Ucrânia é estar do lado da Federação Russa. "Quem não está comigo, está contra mim", já se dizia em Mateus. Milénios de pensamento posterior parecem não ter servido para grande coisa.
   Não pode simplesmente um gay ter a sensibilidade humanista que Leonardo mostra não ter? Porque hei-de estar a fazer o jogo do Hamas colocando-me contra a chacina de um povo, a destruição de hospitais e escolas, ataques indiscriminados a campos de refugiados, detenções arbitrárias sem direito a defesa, mortes de jornalistas e funcionários da ONU, milhares de crianças assassinadas? Não será possível estar contra os crimes de guerra de Israel sem ser a favor do Hamas? Não será possível condenar igualmente o ataque às Torres Gémeas e a invasão do Iraque? Ser gay impede-me de ser contra esta chacina? Como é, voltamos a justificar a pena de morte para quem mate? É esta lógica maniqueísta e unilateral que nos querem impor? Os venturas adoram. Infelizmente, não estão sozinhos.

2 comentários:

Francisco disse...

Os e as Leonardos deste mundo vão ajudando no processo de desmantelamento da velha narrativa "europeia" ocidental. Eles adoram viver no meio do ruído, no centro da confusão. O que os Leonardos e as Leonardas não levam em conta é que eles e elas estão também incluídos quando descarregarem o autoclismo. A canoa desde onde escrevem é muito frágil mas como a grande maioria têm também dificuldade em distinguir, pois pensam que vão a bordo de um iate.

Eu já nem perco tempo de antena com estas coisas escritas por perfis mediáticos.

Abraço e obrigado.

Anónimo disse...

A Leonardo tem surpreendido e muito, muitos dos seus leitores. A criatura pouco o nada fez na vida que lhe causasse suor, leu, leu muito, mas pelos visto a leitura não lhe deu sabedoria .... nem a idade. Vendeu-se, vendeu a alma ao diabo, muito provavelmente para poder sobreviver .... há quem preferisse ir lavar escadas.