A mensagem do Dia Mundial do Teatro divulgada pelo
International Theatre Institute está muito bonita. É amorosa, querida, fofa,
podia ter sido escrita pelo José Tolentino Mendonça. Não foi. O autor chama-se
Jon Fosse, é norueguês, andou perdido pelo ateísmo mas a literatura salvou-o.
Ainda bem para ele. É tudo sublime, podia ser lido num discurso da miss mundo,
mas estes dois parágrafos, meu Deus, estes dois parágrafos dão-me a volta ao
coração como um cilício: «A arte, a boa arte, consegue combinar de um modo
maravilhoso o absolutamente único com o universal. Permite-nos compreender o
que é diferente — o que é estranho, se quiserem – como sendo universal. Ao
fazê-lo, a arte rompe fronteiras entre línguas, regiões geográficas, países.
Reúne não apenas as qualidades individuais de cada um, mas também, noutro
sentido, as características particulares de cada grupo de pessoas, por exemplo
de cada nação. / A arte consegue isto sem anular diferenças nem tornando tudo
igual, mas, pelo contrário, mostrando-nos o que é diferente de nós, o que é
estranho ou estrangeiro. Toda a boa arte encerra precisamente isto: algo
estranho, algo que não podemos compreender por completo e, ao mesmo tempo, de
certa forma, entendemos. Encerra um mistério, por assim dizer. Algo que nos
fascina e nos empurra para além dos nossos limites e, desse modo, gera a
transcendência que toda a arte deve encerrar em si conduzindo-nos a ela.» O planeta
sob emergência climática, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
definitivamente enterrada sob os escombros da Palestina, o Mediterrâneo
transformado num cemitério, a Ucrânia invadida sob ameaça nuclear, mas dêmos os
braços, cantemos o Kumbayá, corações ao alto, a transcendência é o caminho. Eu
cá prefiro suprimir a palavra transcendência do discurso, prefiro uma arte
atenta aos homens, sim, à sua diversidade, pois claro, mas que deixe a cada um,
sem o empurrar, para esses mundos salvíficos de sonho que as religiões
inventaram distraindo-nos da Terra. Se toda a boa arte encerra algo, a má não o
encerra menos, e isso não é estranho nem claro, não é inacessível nem
incompreensível, esse algo chama-se liberdade… a que a uns levará à
transcendência, a outros desbravará caminho entre os homens. Não atalhemos
caminho, por favor, que para nos conduzir nos ínvios caminhos do Senhor já
temos artistas que cheguem a dar missa ao domingo.
2 comentários:
Muito pouco se entende da trascendência, talvez porque muito estigmatizada… mas transcender é algo que se faz no plano terreno. É estar aqui de um modo mais vivo.
Penso que o que Jon Fosse queria dizer é que a arte abre o campo da visão, mantém as mentalidades fléxiveis, pois sabemos que em países onde a arte é condenada a liberdade também o é.
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