quarta-feira, 29 de maio de 2024

TISANAS

 


   Em “A Condição Pós-Moderna”, Jean-François Lyotard (1924-1998) referiu-se à micronarrativa enquanto pragmática do saber anterior ao discurso modelador das grandes construções científicas. As histórias populares, as fábulas, os contos, as lengalengas, oferecem uma pluralidade de jogos de linguagem que possibilitam a uma comunidade de falantes a transmissão de uma perspectiva sobre o real que já não é meramente subjectiva. Na literatura, o termo micronarrativa vem sendo objecto de discussão, sobretudo neste século, após o incremento de formas de narrativa breve propulsionadas pela comunicação em rede. É um erro, no entanto, considerar a micronarrativa à luz apenas dessas práticas de escrita que a internet veio estimular. Anteriores à internet são a fábula, a pequena história, o aforismo, o epigrama, entre tantas outras práticas de escrita que encontram no conceito de micronarrativa uma designação válida. Muitos autores resistem ao uso do termo, preferindo falar apenas de conto ou de poema em prosa. Estão no seu direito. Mas qual a melhor forma de nos referirmos a textos como as tisanas de Ana Hatherly (1929-2015), que sendo aforísticos não são aforismos, que sendo narrativos não são contos, que sendo poéticos não são poemas em prosa?

   No notável ensaio de Ana Marques Gastão que acompanha, à laia de posfácio, a mais recente edição de ”Tisanas” (Assírio & Alvim, Janeiro de 2024), edição que se propõe “concluída” de um work in pogress que, na verdade, a autora não chegou a concluir (as obras inacabadas são as melhores, e esta não é excepção), fala-se de narrativas poéticas, apontamentos diarísticos, algo de crónica, poemas em prosa, antifábulas, prosopoemas, prosa poético-filosófica, poemas-narrativa, pequenas narrativas, mas é no termo micronarrativa, usado amiúde, que melhor se traçam as coordenadas deste trabalho fundamental que a literatura portuguesa do século XX nos outorgou: «Atravessadas por apontamentos diarísticos, estas micronarrativas, muitas de tendência autobiográfica ou onírica, assentam numa forte erudição e no estudo de textos essenciais da cultura europeia e da sabedoria oriental nos domínios literário, filosófico, científico, artístico e espiritual» (p. 191). E acrescenta: «Assume-se, neste género de micronarrativas — além de um sentido binário das oposições —, dos simbolismos e da ironia, que nem tudo tem um fundamento: a verdade é, por vezes, uma mentira velada» (p. 198). Diz ainda Ana Marques Gastão: «Nestas micronarrativas, o sujeito é uma personagem inserida num mundo-máquina, num mundo animal, vegetal, por vezes com algo de inumano» (p. 202). E por fim: «O carácter inusual das micronarrativas poéticas no Portugal daquela época e a dificuldade de leitura que implicavam, associadas à sua caminhada por dentro do Experimentalismo, não a fizeram, no entanto, desistir» (p. 210).

   Devemos agradecer a obstinação, pois o resultado, que tem paralelo nos “Fragmentos” de Novalis (1772-1801) ou nas “Greguerías” de Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), entre outros, resulta num dos momentos mais altos da literatura portuguesa. O que me parece determinante termos em atenção ao ler este livro é o carácter anfíbio do texto enquanto hipótese de representação do real e de expressão da subjectividade do autor, tal como acontece, só para dar um exemplo, no “Livro do Desassossego”. Fernando Pessoa, que surge mencionado em várias tisanas, parece ecoar numa das últimas que nos envia, precisamente, para essa obra maior do heterónimo Bernardo Soares: «Dizem que a primeira página sempre falta ao sábio, mas não será antes a última? Quantos são os que procuram a luz e não conseguem sequer olhá-la? A ironia é um órfão agressor. O verdadeiro sábio escreve incessante o livro do não-saber, o livro do desassossego» (p. 164). Estou convencido de que este trabalho em progressão das “tisanas” tende para esse esforço, é um livro do desassossego em fragmentos geralmente curtos que subvertem a linguagem nas normas sintácticas, desafiam a regra de contar em inúmeros textos que começam pela locução «era uma vez», desmontam a normalidade praticando um nonsense tantas vezes desconcertante, desenham um arquipélago pessoal que leva o leitor a vários lugares, da imaginação e do real, nem sempre separados por fronteiras claras, que são, no seu todo, um não-lugar, tal como os aeroportos amiudadamente mencionados. Este não-lugar é a própria vida, espaço em que se está e se é indefinidamente.

   Hatherly fala com os livros que lê, com a música que ouve, com os amigos que a visitam ou que a própria visita, com a flora e a fauna que a circundam num mundo de perplexidades propensas à meditação e à reflexão, por vezes num tom humorístico que a aproxima de Gogol (1809-1852), noutras ocasiões em toada kafkiana. É o ofício da escrita enquanto ritual de vida que surge na tisana 103: «Sento-me e escrevo. É a minha tisana matinal. Penso no acto de escrever. O real é uma retrospectiva: registar recolher nomear esquecer. A mão obedece é uma bobina de seis pontas quando escreve. Esse é o mundo natural do escritor» (p. 59). Ou na 200: «Sento-me à mesa de trabalho, destapo a máquina de escrever vou começar o meu retrato. Escrevo: Não vivo no meu endereço. Nunca vivi no endereço que dei. A singularidade da minha experiência reside na observância da singularidade da sua percepção. Paro e leio o que escrevi. Depois acrescento: A história do mundo atravessa-me» (p. 89).

   Outro dado curioso é revelado na tisana 306, em que a escrita surge como acontecimento, isto é, a própria palavra é vida gerada (a certa altura, de resto, Hatherly compara a sujidade da criação com a sujidade do parto): «Algo está sempre a acontecer. Por isso escrevo. Escrevo porque algo aconteceu ou acontece. Escrever é isso, mas escrever é sobretudo produzir acontecer» (p. 118). Cito estas tisanas e receio que, quem me leia, possa ficar com uma ideia errada do livro, cuja diversidade tanto no tom como nos temas é imensa. Sendo sobre a relação da escrita com a vida, esta é, antes de mais, uma obra que nos oferece possibilidades de entendimento da vida no curso natural dos dias, com acontecimentos, de que fazem parte os sonhos e a imaginação, em espaços e tempos mais ou menos concretos. É uma obra complexa na sua simplicidade e simples na sua tremenda complexidade. Deve ser lida, atentamente.

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