¿Qué puede haber más espeluznante que tu hijo con los
ojos de tu violador?
Tivemos ontem oportunidade de assistir a um belíssimo
momento de teatro no Pequeno Auditório do CCC, proporcionando pelo Teatro
Clásico de Sevilla a convite do Teatro da Rainha. Um manto rubro aveludado, sob
o qual se esconde uma lixeira, é o chão que Lucrécia pisa. Texto excelente de
Alfonso Zurro, a partir de um poema de Shakespeare, um desses poemas que
atravessam os séculos sem se perderem pelo caminho, para uma interpretação magnífica,
exigente, contida mas intensa de Lorena Ávila. Esta Lucrécia, que é a de
Shakespeare, projecta-se no ar da história e viaja no tempo, nela cabem tanto
as mulheres estupradas na Grécia de Homero como nas ruínas de Gaza. Pungente, o
espectáculo nunca perde o controle sobre a dimensão terrível do tema abordado,
seja quando coloca Lucrécia sob interrogatório policial, na presença de um juiz
ou numa clínica onde pretende interromper uma gravidez indesejada. Zurro
torna-a contemporânea explorando o poema de Shakespeare a partir do que nele
está escrito e do que nele não podia estar escrito. A espaços incomoda, faz o
que se espera que um espectáculo de teatro faça, perturba consciências,
instaura a dúvida, obriga-nos a reflectir sobre a tremenda e terrível solidão
das vítimas. Leio hoje que, na Argentina, Milei ordenou o encerramento de uma
agência de combate à violência de género com importante trabalho na defesa dos
direitos das mulheres e no apoio às vítimas. Leio a notícia e sinto um nó no
estômago. Depois do espectáculo de ontem, apanhar pela manhã com uma notícia
destas é como levar uma chapada de realidade. Que os dias se cumpram lutando e
trabalhando por um mundo melhor, porque este que temos diante de nós dá provas
continuadas de que vai na direcção errada.
Alfonso Zurro, in "La Violación de Lucrecia".
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