domingo, 14 de julho de 2024

AS PRIMEIRAS VEZES

 
Lembro-me pouco das primeiras vezes, apago-as involuntariamente, talvez por algum mecanismo interno que desconheço e não domino, porventura de autodefesa, ou quem sabe de mero desinteresse. Não me recordo do primeiro dia de trabalho, por exemplo. Se estava ansioso, nervoso, calmo, confiante. Da primeira vez que fiz amor só me lembro que estava muito bêbado, pelo que me esqueci do resto. O primeiro livro foi recalcado, creio que por vergonha. O primeiro dia de escola está-me atravessado algures entre o pensamento e a garganta, surge-me, de quando em vez, como uma imagem regurgitada. Creio que houve alguém a chorar por mim. Terá havido? A primeira vez que viajei, quando foi? E onde? De todas as primeiras vezes que podiam eventualmente ser marcantes, o primeiro beijo, o primeiro cigarro, o primeiro passo, a primeira perda, o primeiro borrão tornado público, sobra-me praticamente nada. Contam-me que tive um parto traumático, talvez se deva a isso. Não preciso de explicações, pouco me importa, mas constato que assim é porque conheço muita gente que guarda as primeiras vezes como tesouros pessoais. As minhas primeiras vezes são sombras difusas, o que me deixa espaço para reinventar a vida como bem me apetece. Quero crer que as primeiras vezes foram tão determinantes que as esqueci. Só o que esquecemos nos determina. Sobre as memórias vivas temos o poder de as controlar, o que esquecemos escapa-nos, há-de andar por dentro de nós fazendo das suas, condicionando as decisões, as hesitações, cada passo da caminhada que é a vida na direcção do abismo.

2 comentários:

sonia disse...

Perfeito! É isso o que acontece.

Anónimo disse...

Só me lembro das primeiras vezes que se atrasaram. Aquelas que eu devorei no tempo certo, com a urgência de viver dos primeiros anos, esqueci-as todas.