JORGE PATEGO OU O MARIDO HUMILHADO
de Molière
Entre 10 e 14 de Julho, sempre às 21h30, o Teatro da Rainha apresentará Jorge Patego ou o marido humilhado, de
Molière. Trata-se de um texto que Fernando Mora Ramos conhece bem, com ele
inaugurou o seu percurso na encenação, em Julho de 1979, no então Centro
Cultural de Évora. Agora com nova tradução de Isabel Lopes, George Dandin ou le mari confondu ganha
com o tempo feições que resgatam a peça do campo da simples comédia de costumes
e a recentram no contexto de um tribunal de classe que encontra nas relações
familiares o seu palco privilegiado. A infidelidade e o ciúme estão no centro
da trama, a par de ambições sociais determinadas pela filiação e pela linhagem.
JORGE PATEGO:
Ah! Como uma esposa fidalga é um estranho negócio e como o meu casamento é uma
eloquente lição para todos os lavradores que querem elevar-se acima da sua
condição e aliar-se, tal como eu fiz, à casa de um fidalgo!
Jorge Patego é um camponês novo-rico que desposa uma fidalga com a
intenção de ascender socialmente. Filha de uma nobreza rural em decadência,
Angélica, a mulher de Patego, não se conforma com o destino que os pais lhe
arrumaram. Foi moeda de troca num negócio de que tanto ela como o marido saíram
a perder. Enamorada de um visconde com posição na corte, sonha com cortesias e
galanterias que a gente da província desconhece. Patego tudo fará para provar a
infidelidade de Angélica, que com habilidade e astúcia escapa sucessivamente às
goradas tentativas de prova.
Podemos falar de duas dimensões nesta peça de Molière, uma patente e outra latente. A primeira é a da comédia de costumes, a do marido corno, tema caro ao autor francês, que tudo faz para provar a infidelidade da mulher. A segunda é a da crítica social plasmada no conflito de classes. Patego é um rústico a quem falta o trato e as maneiras dos cortesãos. Os sogros, de apelido Vilar de Tolos, são de uma nobreza rural em decadência, fazem da filha moeda de troca a fim de sustentarem um modo de vida afectado, imitação reles de Versalhes. O tratamento que oferecem ao genro não é muito diferente do que este oferece aos criados, a despeito da agressividade e da violência nos gestos. Acusam-lhe a falta de civilidade e de boas maneiras, cabendo à Senhora de Vilar de Tolos deixar bem claro que «não estamos entre iguais».
ANGÉLICA: Como
em todos os seus discursos e em todas as suas acções a gente da corte tem um ar
tão agradável! E que é, ao pé deles, esta nossa gente da província?
Diz o encenador Fernando Mora Ramos: «O mais
complexo em “Jorge Patego ou o marido humilhado” são o próprio Patego e
Angélica, ele sofrendo um tipo de cisão interior, experimentando uma “dor”
desconhecida num tipo que pensa que o dinheiro compra tudo e ela “sonhando” com
uma vida que Patego nunca lhe dará e a que os pais a obrigam — a escapatória será,
portanto, fazer como na corte — imita outros com que sonha — e ter uns amantes,
no seu caso expressando no fazer amoroso uma ingenuidade própria do seu
isolamento duplo, inexperiência por um lado e fechamento absoluto de meio por
outro, um cu do mundo fora do tempo e fora da geografia.»
Angélica, que nada tem de angelical, traz à
liça temas caros à época. Importa lembrar que a graça do corno como figura tipo
em contexto literário não é tão simples quanto aparenta, ela nem sempre serviu
para provar a maldade das mulheres em contraposição à inocência dos homens.
Molière é especialmente perspicaz no modo de abordar o tema, eximindo-se de
julgamentos sobre a figura feminina. O ciúme doentio de Patego pode ter as suas
razões, mas a infidelidade de Angélica não deixa de ter as suas. Afinal, foi
obrigada a casar com um homem que nada lhe diz, é jovem, tem direito a gozar
dos prazeres da vida. Isso mesmo reivindica, coadjuvadas pela criada Claudina, trazendo
à cena reclamações feministas, que deixaram boquiabertos os críticos de
antanho.
SENHOR DE VILAR
DE TOLOS: Na casa de Vilar de Tolos nunca se viu uma cabeça de vento e a
bravura não é mais hereditária nos varões do que a castidade nas damas.
Ninguém escapa isento desta comédia exibida,
pela primeira vez, no Palácio de Versalhes durante Le Grand divertissement royal. Estávamos em 1668. George Dandin ou le Mari confondu, assim
como Le Misanthrope (1666), foram peças
pouco apreciadas no seu tempo, ao contrário de outras comédias que deixavam
perceber nas entrelinhas ataques pessoais e crítica de costumes. Dandin pecava,
desde logo, por não penalizar a mulher infiel face ao marido traído. Mas havia
também no texto, ainda que de modo menos explícito, a denúncia de uma justiça
desigual para nobres e lavradores. A igreja e uma certa corte de instalados não
apreciaram.
Há um dado biográfico no percurso de Molière que talvez devamos
considerar. Pouco antes desta peça estrear, Molière havia casado com a actriz
Armande Béjart, vinte e três anos mais nova, julgando tratar-se de uma irmã de
Madeleine Béjart, a jovem actriz de quem fora amante e com quem constituíra a
sua primeira trupe depois de renunciar à herança paterna: o Illustre Théâtre.
Ao que consta, seria filha. O facto foi aproveitado pelos rivais para o
criticarem, aumentando o número de inimigos. Diziam que havia casado com uma
filha. Valeu-lhe o rei, de quem tinha recebido uma inusitada pensão, e cujo
apoio se manifestou publicamente ao aceitar ser padrinho do primogénito do
dramaturgo. As calúnias, no entanto, nunca pararam, sucedendo-se os escândalos uns
aos outros. O clero tomava posição procurando proibir-lhe as peças.
SENHORA DE VILAR
DE TOLOS: Lembrai-vos de que haveis desposado uma fidalga.
Hilariante, cómico, divertido, Jorge
Patego ou o marido humilhado beneficia de um humor especial. Diz Fernando
Mora Ramos: «Neste “Jorge Patego” a dimensão cómica — Patego é um “caso de estudo” —
assenta na cisão identitária do protagonista: entre o estatuto querido e a
impossibilidade de lhe aceder por via da “fazenda” — o que constata já depois
de casado, a esposa não é a que comprou, a norma dela não é a dele.» E remata:
«Jorge Patego é uma comédia negra. (…) Aqui temos a história de um mundo
fechado que mimetiza uma Versalhes que desconhece.»
Uma comédia negra, portanto, de um humor que
escapa ao riso fácil e resiste no tempo por transgredir nas fórmulas mais
básicas. Não obstante, este Jorge Patego é um tratado de comédia que devia ser
leitura obrigatória em qualquer escola de humor. As repetições, as hesitações,
as personagens que se corrigem umas às outras, os lapsos, as inversões de sentido,
a dinâmica nas transições de cena, tudo isso contribui para um cómico anterior
à indústria do riso. Trata-se de um cómico que incorpora a dimensão trágica de
personagens que são vítimas de traição, de ambições arrivistas, da hipocrisia
que representam, de maus tratos, das suas afectações, da condição social e
singular em que se encontram como pássaros a cantarolar no interior de uma
gaiola.
CLITANDRO:
Merecíeis sem dúvida um destino bem diferente e o Céu não vos criou para serdes
a mulher de um camponês.
Molière, nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, nasceu em Paris no
ano de 1622. Filho de um estofador com o cargo de valet de chambre e tapeceiro do rei Luís XIV, ficou órfão de mãe
com apenas dez anos de idade. Em 1633, entrou no curso de Humanidades do
Collège de Clermont, uma prestigiada escola de jesuítas frequentada pela
nobreza e pela alta burguesia. Aí completou a sua formação em 1639, adquirindo
posteriormente do pai o título de Tapissier du Roi. Isto permitiu-lhe contactar
com o elegante Rei Sol de França, numa época de intensa criatividade artística.
Frequentou o ambiente teatral travando conhecimento com Tiberio Fiorilli, dito
Scaramouche, actor italiano de commedia
dell’arte.
Este encontro com a commedia favorece também George Dandin. Refere Mora Ramos: «No caso de Patego é muito claro que há cenas que são puro entretenimento a que se seguem outras de tipo nada “para divertimento e riso garantido”. A cena de Perdigoto é isso: um número em que se respira uma pausa na trajectória cornuda de Patego. A cena em si, por outro lado, no limite, nada tem de divertido, pois é a cena de um espancamento que não acontece por talento do fugitivo Perdigoto, cuja arte é, como em Arlequim, escapar às pancadas. Já o desgraçado Scapin, outra figura cómica famosa de Molière, apanha pauladas sem fim dentro de um saco.»
CLAUDINA: Quanto a mim, detesto os maridos ciumentos e quero um que não se espante com nada, um tão confiante e seguro da minha castidade que me pudesse ver, sem se inquietar, no meio de trinta homens.
Com cenografia construída por Joel Pereira a
partir do cenário desenhado por José Serrão para “Mandrágora”, de Niccolò
Machiavelli, luz de Hâmbar de Sousa e desenho de som de Francisco Leal, Jorge Patego ou o marido humilhado conta
com interpretação de Fábio Costa (Jorge Patego), Mafalda Taveira (Angélica),
José Carlos Faria (Senhor Vilar de Tolos), Isabel Lopes (Senhora de Vilar de
Tolos), Hâmbar de Sousa (Clitandro), Beatriz Antunes (Claudina), Nuno Miguens
Machado (Manhoso) e Tiago Moreira (Perdigoto). De 10 a 14 de Julho, no Largo
Rainha Dona Leonor, junto ao Hospital Termal, sempre às 21h30. Entrada livre
por ordem de chegada.
Podemos falar de duas dimensões nesta peça de Molière, uma patente e outra latente. A primeira é a da comédia de costumes, a do marido corno, tema caro ao autor francês, que tudo faz para provar a infidelidade da mulher. A segunda é a da crítica social plasmada no conflito de classes. Patego é um rústico a quem falta o trato e as maneiras dos cortesãos. Os sogros, de apelido Vilar de Tolos, são de uma nobreza rural em decadência, fazem da filha moeda de troca a fim de sustentarem um modo de vida afectado, imitação reles de Versalhes. O tratamento que oferecem ao genro não é muito diferente do que este oferece aos criados, a despeito da agressividade e da violência nos gestos. Acusam-lhe a falta de civilidade e de boas maneiras, cabendo à Senhora de Vilar de Tolos deixar bem claro que «não estamos entre iguais».
Este encontro com a commedia favorece também George Dandin. Refere Mora Ramos: «No caso de Patego é muito claro que há cenas que são puro entretenimento a que se seguem outras de tipo nada “para divertimento e riso garantido”. A cena de Perdigoto é isso: um número em que se respira uma pausa na trajectória cornuda de Patego. A cena em si, por outro lado, no limite, nada tem de divertido, pois é a cena de um espancamento que não acontece por talento do fugitivo Perdigoto, cuja arte é, como em Arlequim, escapar às pancadas. Já o desgraçado Scapin, outra figura cómica famosa de Molière, apanha pauladas sem fim dentro de um saco.»
CLAUDINA: Quanto a mim, detesto os maridos ciumentos e quero um que não se espante com nada, um tão confiante e seguro da minha castidade que me pudesse ver, sem se inquietar, no meio de trinta homens.
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