Sabemos
que tudo continuará sem nós
A
morte confirma que não éramos necessários
e
só a liberdade ou a sua invenção poderia integrar-nos
na
grande onda volúvel do universo
Mas
o que nós conhecemos melhor é a nulidade absurda e essencial
a
que o tempo é alheio no seu arco irrevogável
Não
podemos assumir o inexorável enigma
do
nascimento e da morte O que nos cabe construir
é
a habitação de cada instante a invenção do possível
de
um espaço de respiração de uma delicadeza voluptuosa
Vivemos
separados na solidão de um círculo
Que
perdeu a substância real e o sangue da imaginação
É
nesse círculo de cal que inscrevemos os signos incertos
Que
o vento há-de disseminar nos campos do olvido
O
poema imagina a combinação fortuita da sua anulação
e
avança no devir para levantar uma coluna de água
que
seja a sua vitória nula sobre o não sentido do mundo
Que
impossível é a voz que canta mas dilata
o
pulmão do ser e liberta a boca contraída
porque
só ela poderá ser a abertura viva
para
a glória invulnerável de um instante absoluto
Só
nela o barco e a árvore a serpente e a ave
podem
unir-se num sopro de instantânea felicidade
em
que estaremos no mundo como num corpo amado
Mas
a nossa vida decorre entre os fragmentos do caos
ou
na violência do vazio E as coisas aparecem-nos
no
seu excesso absurdo e arbitrário
Onde
está a sabedoria a humildade a lucidez
onde
a maturidade do obscuro vigor?
O
que escrevemos é uma ficção entre a vertigem e a náusea
mas
estas perduram num cerco irrefutável
e
nós sentimo-nos indefesos na dispersão confusa
bombardeados
pelos clangores e pelos gritos obscenos
que
agridem o silêncio das árvores e a transparência aérea
António
Ramos Rosa, in À Mesa do Vento seguido de As Espirais de Dioniso, Pedra
Formosa, colecção Arco Imperfeito, Dezembro de 1997, pp. 25-26.
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