sexta-feira, 13 de setembro de 2024

50 X 1

 



“An American Prayer”: Jim Morrison. Music by The Doors.

A dedicatória no livro data de 1990, ano dos 16, mas já antes tinha andado com o vinil debaixo do braço. Exemplar de um amigo, com quem passava tardes a tentar traduzir as palavras daquele objecto estranho e fascinante. Tudo começou por ali, as portas de um mundo novo que então se me abria e no qual mergulhei a pique. «Awake / Shake dreams from your hair». Acho que a certa altura sabia aquilo tudo de cor e salteado, do princípio ao fim, como uma oração, claro, como um mantra repetido vezes sem conta para me alhear do marasmo e da norma. Devo ter começado a escrever mais regularmente também por essa altura, cevando um vício que se colava à boca e tomava conta do pensamento, das mãos, de um corpo cada vez mais cativo das palavras e das imagens que com as palavras era possível desenhar interiormente. «Ghost song», os fantasmas, a dor que não se via mas que se sentia, os medos invisíveis, a vergonha, a perfeição que nos era forçosa como regra que fazíamos questão de infringir. E aquela história dos índios a sangrar, a primeira vez que se provou o medo, tudo a tomar conta de mim e a colar-se-me por dentro sem explicação aparente. Porquê? Porque me tocavam tanto aquelas palavras, as histórias, a música? Porque perduram elas como uma espécie de fundação de todos os crimes posteriores? «Indian, Indian what did you die for?» Porque mataram o selvagem? Porque foi o selvagem esquartejado pelas bases militares no deserto? Não é só a história de um continente, a América, que se lamenta como numa elegia nas palavras de Jim Morrison, é a mecânica do mundo que impôs isso a que chamamos civilização à conta das mais incivilizadas iniquidades. Ontem como hoje, sempre com as santas inquisições a chicotearem o cavalo morto da liberdade.

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