Os girassóis sustidos pela
luz, mas a luz
pulverizando tudo. Desenraizando
escadas, quintas, muros. Gatos, hortas,
o ventre de um sofá e mais acima
o prédio de um antigo futurismo escalavrado
cujo avistamento pardo nos convinha
quando queríamos, em palavras cautelosas,
(o filtro gasto da sinceridade, a citação)
exprimir esta ternura. Ombro a ombro,
as nucas exsudando o seu veludo,
os quintais abandonados e as costas nuas
das ruínas. Havia nisto uma vontade, o Verão
oscilando como um fato muito largo sobre a pele.
Um cão ladrava de garganta contra o vento
costurando-nos os nervos, a memória
dividindo os seus ecrãs. E eu guardei fotografias.
Numa resta apenas a paisagem
como partitura para a infância, uma pequena face
a tua mão. Abrias
o palco derramado dos meus dias. Sustentavas
uma imitação de intensidades justas, o amor
como medida. Nunca soletraste mais
do que sensíveis idas por dormidos astros,
a tarde sempre e nunca a noite,
a devida desolação.
Andreia C. Faria (n. 1984), in
Canina (Tinta-da-China, 2022). «Provavelmente desde Luís Miguel Nava que não
surgiam imagens tão viscerais na poesia portuguesa. Andreia C. Faria (n. 1984)
sempre trouxe para os seus versos o corpo, o corpo feminino, como território
onde a escrita acontece (ou de onde emana), como palco instável de uma
experiência sensorial levada às últimas consequências, no limite explícito de
uma materialidade em risco (porque sujeita à laceração do embate brutal com o
mundo)» (Cláudia Galhós, Expresso, 2 de Outubro de 2022). «O que parece
acontecer aos poemas de Andreia C. Faria é, precisamente, essa virtualidade de
começarem pela constatação do concreto e imaginarem em torno dele, não
quaisquer mundos paralelos, realidades alternativas, nada que o valha, mas
dotar o próprio real de camadas adicionais, níveis de entendimento que não o
reduzam a uma banal e passiva constatação. Fazer do evidente o menos esperado,
e do já visto uma possibilidade de surpresa e instigação, eis o que conseguem
atingir os poemas de Andreia C. Faria» (Hugo Pinto Santos, Público, 15 de
Agosto de 2022).
pulverizando tudo. Desenraizando
escadas, quintas, muros. Gatos, hortas,
o ventre de um sofá e mais acima
o prédio de um antigo futurismo escalavrado
cujo avistamento pardo nos convinha
quando queríamos, em palavras cautelosas,
(o filtro gasto da sinceridade, a citação)
exprimir esta ternura. Ombro a ombro,
as nucas exsudando o seu veludo,
os quintais abandonados e as costas nuas
das ruínas. Havia nisto uma vontade, o Verão
oscilando como um fato muito largo sobre a pele.
Um cão ladrava de garganta contra o vento
costurando-nos os nervos, a memória
dividindo os seus ecrãs. E eu guardei fotografias.
Numa resta apenas a paisagem
como partitura para a infância, uma pequena face
a tua mão. Abrias
o palco derramado dos meus dias. Sustentavas
uma imitação de intensidades justas, o amor
como medida. Nunca soletraste mais
do que sensíveis idas por dormidos astros,
a tarde sempre e nunca a noite,
a devida desolação.
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