domingo, 21 de fevereiro de 2010

O DISCURSO OPCIONAL OBRIGATÓRIO

Seria incorrecto afirmar a inexistência de interesse pela poesia contemporânea espanhola antes de Joaquim Manuel Magalhães ter começado a publicar, na Relógio D’Água, os Trípticos Espanhóis. Os três volumes organizados pelo poeta e crítico português limitaram-se a desbravar caminho na redescoberta de uma poesia tão ou mais cativante do que aquela que por terras lusas vai sendo dada à estampa, divulgando de um modo consistente alguns poetas de um país vizinho onde os debates em torno da produção poética não diferem muito dos que por cá vão fazendo escola. É óbvio que os nomes seleccionados por Joaquim Manuel Magalhães servem, embora não tão linearmente quanto possa parecer, a defesa de uma poesia realista que Jorge de Sena já apregoava e Magalhães se limitou a reforçar. Dito isto, no primeiro de três volumes, publicado em Maio de 1998, foram traduzidos e apresentados José Luis García Martín, Abelardo Linares e Julio Martínez Mesanza. Seguiram-se, no segundo volume, datado de Junho de 2000, José Ángel Cilleruelo, Vicente Valero e Diego Doncel. Por fim, em Outubro de 2004, o terceiro volume dos Trípticos Espanhóis apresentou-nos Amalia Bautista, Luis Muñoz e Pablo García Casado. Quem julgar que a poesia espanhola se reduz a estes nomes está redondamente enganado. Estas vozes são apenas as mais facilmente ajustáveis a um programa que a editora Averno se encarregou de prosseguir, publicando, em Junho de 2005, Antologia de José Ángel Cilleruelo, para reincidir, em Novembro de 2007, com Em Nenhum Paraíso, volume de Diego Doncel. De resto, ambos os livros foram traduzidos e introduzidos pelo próprio Joaquim Manuel Magalhães, acontecendo o mesmo com A Névoa (Maio de 2006), de José Mateos. Mais recentemente, coube a Manuel de Freitas a tradução de A Caixa Negra (Fevereiro de 2009), de Josep M. Rodríguez, e O Discurso Opcional Obrigatório (Novembro de 2009), de Mariano Peyrou (n. 1971).

Ao contrário do que se passou em Espanha, e se exceptuarmos um certo modernismo à moda portuguesa, Portugal chegou sempre atrasado às vanguardas. O nosso surrealismo foi um pós-surrealismo. Surgiu, em reacção ao neo-realismo (“poesia de comício”?), praticamente vinte anos depois dos manifestos de Breton. Andámos sempre na sombra do que lá por fora se foi fazendo, ainda que cá por dentro o excesso metafórico, a radical arritmia metonímica, os misticismos de pacotilha e o culto inconsequente de um hermetismo vazio tenham, muito naturalmente, obrigado à defesa de uma poesia voltada para o real. Mas esta poesia não deve ser confundida com mero relato quotidiano, estória disfarçada de poema, confessionalismo exacerbado, politiquice rasteira. Nos dois lados da barricada, o folclore tem o seu lugar. Então, de que real estamos a falar quando falamos de um regresso ao real? O Discurso Opcional Obrigatório pode servir-nos de paradigma. Na introdução a esta antologia seleccionada por Manuel de Freitas, José Ángel Cilleruelo caracteriza a poesia de Mariano Peyrou chamando a atenção para uma «distorção constante da racionalidade», para terminar com a afirmação que a seguir se reproduz: «A incompreensão da realidade, que aumenta à medida que mais intensamente se vive e actua nela, converte-se no emblema do vitalismo arracional ─ se me é permitido o neologismo ─ que Mariano Peyrou estabelece como a razão estruturante da sua obra poética» (p. 13). Sublinhamos «incompreensão da realidade» e «vitalismo arracional», por nos parecerem as chaves para o entendimento não só destes poemas como da melhor poesia dita realista que se vai publicando entre nós.

De facto, o que sobressai nestes poemas colhidos de quatro livros anteriormente publicados pelo autor ─ La voluntad de equilibrio (2000), A Veces Transparente (2004), La Sal (2005), Estudio de lo visible (2007) ─ é a consciência da subjectividade contaminadora da apreensão do real. Esta “poesia do conhecimento” distingue-se de outras por radicalizar o papel do sujeito perante o objecto: «Mais tristes do que os seus melhores versos / são as tardes estéreis do poeta / em que despojado do acaso e da vaidade / (que chama talento ao acaso) / sabe que não encontrará esperança na metáfora» (p. 19). Não se vislumbra, nestes versos, qualquer veleidade cognitiva. Apenas e tão-só um «solipsimo» radical. A ideia da poesia enquanto verdade, ou, se quisermos, enquanto apreensão ou revelação (da verdade), cai por terra, para passarmos a ter apenas a manifestação de uma cisão impossível de transpor entre a realidade e o poeta. Não havendo qualquer pretensão de atingir uma verdade ─ podendo até existir essa pretensão, embora consciente do fracasso para que remete ─ o que é, então, o poema? Talvez uma «radiografia do silêncio» (p. 25) ou um «desejo de silêncio» (p. 29). O poema A Corola Inteira pode servir de resposta: «Ninguém é alguém mas / talvez alguém seja ninguém como / eu, pensa este candidato à / esperança enquanto estuda a / margarida de duas pétalas. O / melhor nestes casos é arrancar o / caule, iludir a lógica disjuntiva / e manter a corola inteira. Não / haverá resposta, e é nisso / que consiste a flor» (p. 27).

Refém da racionalidade, o poeta manifesta racionalmente a arracionalidade do seu discurso, intenta uma retórica contra as pretensões da lógica, chega a fazer filosofia sobre o nonsense que sustém, de um modo invariavelmente débil, a esperança de um conhecimento, resvala, ele próprio, nesse nonsense irónico, conjuga a um só tempo a disjuntiva e resume-se num título: O discurso opcional obrigatório. O que há de mais estimulante nestes poemas é a assumpção das antinomias, o equilíbrio com que nos oferecem uma hermenêutica do mundo invadindo a reflexão lógica, penetrando, inclusive, nos domínios da filosofia da linguagem, sem resvalarem no facilitismo palavroso das academias nem cederem a uma imagética pretensamente transgressora que redunda sempre num nada ter para dizer. De certa forma, são poemas reflexivos. Porém, o que há de menos estimulante nestes poemas é, precisamente, não recusarem a impossibilidade da poesia, tornando-se, eles próprios, paradoxalmente poéticos. Porque, na verdade, se «a representação da dor / é aquilo que dói» ─ e não duvidamos que assim seja ─, para quê escrevê-lo num poema? Digamos que o sentido da poesia talvez esteja em não ter sentido algum. O silêncio não se escreve. Quando muito, pressente-se. A conclusão pode parecer algo niilista: talvez a poesia não exista, talvez existam tão-somente homens que chamam poesia a qualquer coisa que escrevem não sabem bem porquê nem para quê. Talvez por nada, talvez para nada… nem ninguém.

Escrito para o Rascunho.

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