quinta-feira, 11 de março de 2010

O CINEMA ENQUANTO REMAKE



O vídeo acima é do mesmo autor de La Carte, a Melhor Curta-Metragem do FantasPorto deste ano. O estilo é o mesmo, pelo que sou levado a crer que Stefan le Lay gosta de desorganizar histórias de amor recorrendo a artifícios técnicos transformadores da realidade. Em La Carte, as figuras de postais expostos num quiosque de praia ganham vida própria. Uma delas, apaixona-se por uma outra que está num expositor ao lado. O resto resulta de um primoroso exercício técnico que mete as figuras dos postais a saltarem de expositor para expositor, une realidades multicoloridas a paisagens a preto e branco, mistura elementos visuais distantes no tempo mas próximos na temática ilustrada. Tudo muito ligeiro, fascinante, alegre, mas também incitador de um questionamento a que o domínio cinematográfico nos obriga permanentemente, isto é, a transfiguração da realidade enquanto produto de uma imaginação cuja função é o de ir alargando os limites dessa mesma realidade. Se admitimos que no campo da imaginação tudo é possível, não podemos negar que essa infinitude de possibilidades se processa sobre o terreno aparentemente mais limitado do real. Mera aparência, pois o real não é senão o corpo vivo e mutável onde a imaginação vai imprimindo as suas novas aventuras. Os desenvolvimentos constantes da técnica aí estão para o provar.

De uma mão cheia de curtas que vi lá pelo norte, quero ainda sublinhar, até pela relação improvável que mantém com as afirmações anteriores, um trabalho assinado por Artur Serra Araújo. Desavergonhadamente Real é uma curta de meios ínfimos que prova não serem necessários grandes recursos para se fazer bom cinema. Durante uma sessão de filmagens, dois actores acabam por não resistir ao envolvimento e o que deveria ser mera representação de papéis acaba por se confundir com um relacionamento objectivo. As fronteiras que separam a realidade da ficção são transpostas, deixando o espectador na dúvida entre o que possa ser trabalho ou lazer na cena de sexo que está a ser filmada. Mas ainda que a intenção do realizador seja responder a algumas dúvidas entre as relações sempre dúbias entre os domínios da realidade e da ficção, o que fica no ar é uma estranha perplexidade: afinal, não andaremos nós a representar constantemente um papel sem guião nem realizador determinados? Aqueles que nos julgam cumprem o papel do realizador, mas também eles são personagens de uma trama sem fim. Nas suas mãos, nós somos apenas o que resulta de um olhar mais ou menos inteligente no contexto da hermenêutica que pretenda levar a cabo. Curioso paradoxo, este de vivermos sob máscaras que pretendemos serem rostos que nem nós próprios, por vezes, conseguimos vislumbrar com clareza num qualquer espelho revelador de identidades em incessante construção.

Sem comentários: