terça-feira, 6 de abril de 2010

DEDICÁCIAS

Fomos recordados este fim-de-semana de que a poesia portuguesa está em guerra. Pelo sim pelo não, comprei um colete à prova de balas (de borracha) e passarei a andar de capacete nas ruas. Os soldados desta guerra figurativa, há muito que o sabemos, são pobres e mal pagos. Nisto são como os outros. Só se distinguem dos demais por trazerem o amor pendurado ao peito. Os outros trazem o ódio para o qual foram educados. Contudo, é bem visível que nas trincheiras da poesia o amor que se traz pendurado ao peito (ou nas cordas vocais) só serve para atrair víboras que, caso seja necessário, serão mortas à paulada pelos próprios encantadores. Porque nesse amor, a gente já não sabe quanto nele há de desgosto e de aflição, de ressentimento e de frustração. Enfim, de alívio. Furto os componentes da bomba atómica, sumamente ridícula e defeituosa, à nota prévia que Mécia de Sena dedicou às famigeradas Dedicácias de seu genial marido. Agora republicadas pela Guerra & Paz (Março de 2010), seguidas de um discurso proferido a convite da comissão organizadora das comemorações de Camões em 1975, cabe-nos aqui repensar um pouco os ditames de uma guerra que mais se tem assemelhado a uma espécie de auto-genocídio sem Organização Mundial que valha à declarada morte da poesia. Coitadita.

Antes de mais, convém declarar que das quatro dezenas e qualquer coisa de Dedicácias revisitadas, pouco mais que uma dúzia valerá mesmo a pena enquanto poesia. O resto é esterco com o qual a obra poética de Jorge de Sena não se deixa confundir. Isto é apenas uma ínfima partícula dessa obra, «produto de profundo desgosto, porque alguém não esteve à medida da altura que devia; ou de ressentimentos, por alguma maldade ou injustiça recebidas ─ e foram muitíssimas e de toda a ordem» (Mécia de Sena, pp. 11-12). Que o fel do ressentimento vomitado sob a forma de poema seja tão popular, não admira. Mas talvez seja conveniente lembrar aos desmemoriados ou aos desatentos ou aos néscios ou aos despercebidos, sejam eles por conveniência ou pura ingenuidade, que Jorge de Sena não foi mais vítima do país que o maltratou do que muitos outros poetas por aqui nascidos e aqui falecidos, alguns dos quais só nos barbitúricos, no vinho ou noutras matérias apaziguadoras vislumbraram a réstia de conforto que Jorge de Sena foi buscar à escarradeira. Da falta de génios injustamente esquecidos, ostracizados, humilhados por razões políticas, idiossincráticas, religiosas ou meramente estéticas é coisa de que não nos podemos queixar. Valha-nos isso.

De resto, se estamos em guerra, só nos podemos queixar de não sabermos estar em paz com anjos e demónios. Não é preciso ter ido à guerra para saber que o que ela deixa de herança é um rol de destroços e de miséria, de ruínas e de porcarias várias que não vale a pena perder tempo a enumerar. Também não é preciso ter tido um cancro para saber operá-lo. Bastará ter estudado para se chegar a cirurgião. Mais estudo, menos estudo, mais guerra, menos guerra, estas sátiras de Jorge de Sena confirmam o diagnóstico que qualquer ser provido do mínimo senso comum pode traçar do meio literário na sua generalidade, da política nos seus particularismos, da humanidade na sua brumosa disseminação. Sátira política, poema pornográfico, ironia exorcista, compõem o “bestiário”. Os melhores poemas, porque mais universais e intemporais, continuam a ser aquela meia dúzia que viu a luz do dia, em Fevereiro de 1991, em Hífen ─ Cadernos Semestrais de Poesia, n.º 6. Depois há alguns tiros de alvo incerto mas presumível, entre outros de alvo declarado, mas aqui e acolá desprezível. Caso dos dois poemas que têm por objecto, mais do que o surrealismo, a homossexualidade de Cesariny. O que sobra faz-se de umas coisinhas humorísticas que os próprios alvos poderiam usar contra Jorge de Sena. Ninguém notaria a diferença, e está visto que qualquer um pode citar estes poemas fazendo sua a voz biliosa do autor de Peregrinatio ad loca Infecta.

Se há característica espirituosa neste tipo de discurso, é ele poder tornar-se útil aos seus declarados inimigos. O que resta? Uma vítima em estado de graça? Um guerreiro vingando-se pela calada? Outros houve que foram às balas em vida e acabaram desgraçadamente na vala comum. Jorge de Sena preferiu “catedrar-se” no exílio possível, lamentando-se do possível não corresponder às suas aspirações individuais, ao que ele julgava merecer e outros não quiseram reconhecer. Agora é trasladado com pompa e circunstância, tem o seu lugar garantido ao lado de Orpheu. Se fosse vivo, talvez dedicasse um poema à hipocrisia dos que contemporaneamente o incensam. Eu agradeço a estes e àqueles por terem tornado possível o mau génio do poeta, mas não deixo de me interrogar sobre as fontes da insatisfação, sobre os terríveis maus tratos de que terá sido vítima a resistente carapaça do bardo. O que haverá nele que é menos ignóbil do que aquilo que há nos outros? E aí chego ao elogio a Camões, que de tão elogioso se perde nestas turbulentas águas: «cantou a expansão portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e de socialmente responsável» (p. 114). Conseguir vislumbrar na expansão portuguesa algo de «moralmente digno e de socialmente responsável» é d’homem. Ou de poeta. Do mal, o menos.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

Anónimo disse...

Mas como é que se pode condenar um morto como se fosse possível ter publicado o livro no outro mundo? E escrever e pensar para si não é o mesmo?

hmbf disse...

Mas como é que se pode responder a estas perguntas?