Na crónica de hoje publicada no jornal Público, José Manuel Fernandes insiste na defesa das palavras recentemente proferidas, e já amplamente debatidas, da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF). As afirmações de Isabel Jonet podem resumir-se, mais bife, menos Nestum, em três ideias chave: 1. andámos a viver acima das nossas possibilidades, 2. temos que reaprender a viver pobres, 3. em Portugal não há miséria. Para José Manuel Fernandes tudo isto faz sentido, pois nasceu «numa casa grande, com muitas assoalhadas», «tinha um copo para lavar os dentes» e é obeso. Para o meu pai, que nunca teve um copo para lavar os dentes, começou a trabalhar numa taberna com dez anos e toda a vida se debateu por uma vida melhor para os filhos, este discurso de reaprender a ser pobre é insultuoso. Porque ele foi, de facto, pobre. Mas o que enfada na retórica de José Manuel Fernandes não é a incompreensão desta realidade, é uma muito vulgarizada tendência para contornar a verdadeira dimensão das afirmações proferidas pelos adeptos da austeridade. Desde logo, esta subtil hierarquização da indigência que nos leva a separar frugalidade de pobreza e esta da miséria. Desconheço em que parte entra a fome que dá razão de existir ao BACF, mas mais chocante ainda é o discurso em torno do «desregramento no consumo» - como se fosse uma novidade e uma conquista da crise o combate ao consumismo desenfreado. Durante os dez anos que leccionei filosofia e matérias congéneres, entre 1998 e 2008, fartei-me de falar nestes assuntos, ora apoiado nos retratos do “império do efémero” levados a cabo por Lipovetsky, ora estribando-me na amoralidade do consumismo denunciada por Peter Singer. Sempre me pareceu muito clara a esparrela de um “mundo civilizado” quase que exclusivamente fundamentado nessa mecânica escravizante do trabalho, em que a existência do cidadão passa a reduzir-se ao acto de produzir para poder consumir. É a sociedade onde o que se é confunde-se com o que se tem, o ser com o ter. E mais clara me parecia (e parece) quando via (e vejo) agravarem-se as assimetrias entre os mais ricos e os mais pobres, à exacta medida de uma insensibilidade para a causa ecológica que há-de ser a destruição final deste mundo que outros, que não eu, se empenharam em defender. Nem eu nem a esquerda em que mais me revejo (se querem exemplos absurdos, basta atentarem-se ao parque automóvel dos diferentes grupos parlamentares). Mas nada disto tem que ver com o que agora está em causa, pois o que se exige às pessoas é que abdiquem das suas conquistas sociais e legítimos direitos do contribuinte (educação, saúde, subsídio de férias, etc.) como se fosse um luxo mantê-los, com a agravante de se fazerem estas exigências alargando as assimetrias, enriquecendo ainda mais aqueles que já são ricos, roubando descarada e cobardemente os indefesos - indefesos porque a justiça não funciona e a segurança está do lado do poder. Houvesse um mínimo de decência, e os responsáveis pela gestão danosa que nos trouxe aqui estariam todos condenados. Não havendo, querem que nos conformemos com essa falta. É esse conformismo, de braços caídos e olhos postos no chão, que se espera do remediado, oferecendo-lhe a pobreza no horizonte. Ora, como é óbvio, e por mim falo, a minha vida não depende de ter ou não ter MEO em casa, nem sequer de ter televisão ou um carro com treze anos… Não contraí empréstimos para comprar casa na praia, nem recorri a subsídios para recuperar quintas com piscina. Penso, porém, que quem atribuiu esses subsídios e quem concedeu esses créditos não deverá ter a consciência muito limpa, nem quem desenhou leis à imagem e semelhança dos seus interesses pessoais, servindo-se do Estado quando, na realidade, deveria estar a servi-lo. Durante décadas, outra coisa não foi promovida neste país senão o consumismo desenfreado. Vêm agora os seus promotores lavar as mãos falando de austeridade? Dispensa-se a pedagogia a quem não pratica a didáctica, ostentando um bandulho que nada deve à frugalidade. Podia fazer como Henry David Thoreau e montar a cabana no bosque, caminhar como um camelo na direcção das terras selvagens enquanto, manhãs inteiras e até tardes a fio, artesãos e caixeiros permanecem nos seus postos; podia, quem sabe, aprender com a leitura de Caminhada (Antígona, Setembro de 2012), finalmente em tradução portuguesa digna, e investir na preservação do mundo entre o caçador com cheiro a almíscar, pois na Natureza reside a nossa salvação (excepto, talvez, a Natureza de África), escolhendo viver em liberdade como os índios que a gente civilizada e doméstica do Ocidente assassinou. Podia, não fosse ter mais que fazer nas páginas do jornal que já não dirige.
6 comentários:
Espanta-me que haja quem leia as conversas do J.M.F.
Magnífico texto.
Grande texto. Concordo em absoluto. É mesmo de decência que falamos. Depois há a cagança, já o Tony Judt escreve sobre isso: o estilo, a pinta que emanam falando em "sacrifícios" e "austeridade necessária" estando fora disso e completamente por cima do sofrimento de quem é real e seriamente atingido. Não é para todos, isso há que reconhecer. É um falar de pedestral, intelectualmente indigente, mas lá que manda groove... Até um dia lhes derreter a máscara mas até lá quem sabe se até não arranjam outras máscaras...Isto os blasfemos JMF, Helena Matos entre outros idiotas úteis (coisa que gostam de chamar a tanta gente de esquerda) têm um nível de crença que não é mais que a forma exacta que enterrou o mundo em 1929. O antigo maoísmo nalguns deles se calhar não passou de uma crise de adolescência mal resolvida. Ou é recalcamento ou então é a mania de querer andar sempre onde se imagina estar a crista da onda da História.
Grande texto!
A propósito da sua referência a «Caminhada», ocorre-me que ele podia igualmente ler «Dos Confins dos Bosques Para a Civilização», da mesma editora.
trata-se é de aprender a não ser pobre. o que não é um comentário ao texto mas com toda a certeza é um escarro ao jonetismo e ao contra-jonetismo
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