a mesma cantiga de sempre (Lua de Marfim, Março de 2012) é o segundo livro de poemas de Pedro Afonso (n. 1979), publicado quatro anos após a estreia em livro próprio com ainda aqui este lugar (4 Águas, 2008). Trata-se de uma colecção de poemas organizada em quatro conjuntos distintos: a mesma cantiga de sempre, um braço suicida o outro assassino, corpo onde caber e travessia das mãos. Apenas os poemas do primeiro conjunto têm título, o que lhes confere uma autonomia face aos restantes explicada por vários deles terem integrado a antologia Algarve – 12 Poetas a Sul do Séc. XXI (Livros Capital, 2012). São poemas onde a região de onde o poeta é originário aparece reflectida num tom crítico, embora nunca de uma forma explícita. De resto, se há marca que define a poesia de Pedro Afonso é, precisamente, a de nela nada ser explícito. Um aspecto curioso neste conjunto é o de nele se subentender uma espécie de fatalismo ontológico, uma inevitabilidade identitária condenada à desesperança: «podes até ser nómada / mas condenaram-te a ti um dia» (p. 12). Este aspecto legitima alguma desconfiança relativamente à relação mantida entre o sujeito poético e o espaço geográfico onde exerce a sua actividade, algo que se torna menos confuso no poema que oferece o título ao conjunto: «onde vamos senão a lado nenhum / agora que ultrapassámos o porvir / avelámos a própria velocidade da luz // na mesma direcção de sempre até ao cais / a mesma colecta / apurada / pela lâmina dos dias / que nos coça os bolsos rotos da pele caduca // e o carro ou o autocarro / o comboio ou // o barco que partirá num fim de tarde escuro / e os bilhetes que serão sempre os mesmos» (p. 15). A multiplicidade de sentidos que o poema admite não esconde o desespero face à monotonia quotidiana, sobre ele paira a nuvem de uma deslocação impossível. Como é óbvio, esta deslocação pode ser interpretada em vários contextos. Agrada-me particularmente a ideia de uma deslocação interna, pessoal, íntima, a impossibilidade de sairmos de nós próprios por a nós próprios estarmos condenados, e de essa condenação resultar de uma série de condicionantes (biológicas, culturais, geográficas) que se intersectam em diferentes momentos da vida. Esta “impossibilidade” como que dificulta a comunicação, oferecendo à poesia o seu papel conciliador. Ou seja, o poema apresenta-se como o lugar onde os impedimentos se ultrapassam e a incomunicabilidade do ser se resolve mediante uma linguagem libertadora. Neste sentido, a poesia de Pedro Afonso surge na esteira do grande poeta algarvio António Ramos Rosa. Há um poema onde tudo isto ganha uma forma extraordinária, por nele lograr o poeta um equilíbrio raro entre o que os olhos vêem, o coração sente e a cabeça pensa:
urbanismo
ainda há cães que ladram a noite fora
de dentro de casas com pequenos quintais
onde alguém conseguiu pôr uma cadeira atravessada
uma mesa
conheço um sítio onde uma senhora rega
uma planta na ruae outro onde não se estaciona no passeio
tenho um amigo que não tranca a porta de casa
janelas sem persianas
tocando a rua onde velhasespreitam os carros a tarde inteira
respirando o reflexo de seu bafo nos vidros
são vasos
casinhas térreas entre prédios
abandonadas pelo tempocom cadáveres lá dentro
fedendo ao tiro que lhes deram nas costas
Repare-se como a enumeração de elementos paisagísticos excepcionais serve para reforçar a degradação do panorama geral, num remate que não enjeita o exterior sem deixar claro que tudo se passa dentro. Nos poemas dos três conjuntos subsequentes, a poesia de Pedro Afonso resvala para territórios mais líricos. Por vezes aparenta uma ausência de sentido, tal é a encruzilhada de sentidos que se interpõem; noutras ocasiões, uma sintaxe rudimentar leva-nos a pensar numa musicalidade cuja principal característica é a oposição à melodia; a maior parte das vezes, esta apresenta-se-nos como uma poesia complexa sem complexidade. Quero com isto dizer que seria supérfluo debitar texto sobre versos tais como «penteio o tempo com o marfim dos dedos» (p. 31) ou «uma ácida cúpula distante / sobrepõe-se-nos / e dos astros corroídos sugamos / no desapego da dor / a alegria doce de cabelos» (p. 45) ou ainda «a mão quando esgravata o ruído / arqueando os ossos cunhando a carne / e cega coça um pouco do silêncio» (p. 56), só para dar alguns exemplos. São versos inchados de imagens e de metáforas, mais ou menos (in)felizes, que tornam inútil o esforço de interpretá-los, sendo talvez preferível predispormo-nos a tão-somente ouvi-los.
3 comentários:
Que interessante!
Gostei imenso de tuas considerações!
Abraço
Obrigado, Henrique.
Sabe sempre bem ter leitores e ajuda também.
Abraço
este é um dos poemas com que mais identifico o autor. exelente. abraços.
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