terça-feira, 20 de novembro de 2012

a mesma cantiga de sempre

a mesma cantiga de sempre (Lua de Marfim, Março de 2012) é o segundo livro de poemas de Pedro Afonso (n. 1979), publicado quatro anos após a estreia em livro próprio com ainda aqui este lugar (4 Águas, 2008). Trata-se de uma colecção de poemas organizada em quatro conjuntos distintos: a mesma cantiga de sempre, um braço suicida o outro assassino, corpo onde caber e travessia das mãos. Apenas os poemas do primeiro conjunto têm título, o que lhes confere uma autonomia face aos restantes explicada por vários deles terem integrado a antologia Algarve – 12 Poetas a Sul do Séc. XXI (Livros Capital, 2012). São poemas onde a região de onde o poeta é originário aparece reflectida num tom crítico, embora nunca de uma forma explícita. De resto, se há marca que define a poesia de Pedro Afonso é, precisamente, a de nela nada ser explícito. Um aspecto curioso neste conjunto é o de nele se subentender uma espécie de fatalismo ontológico, uma inevitabilidade identitária condenada à desesperança: «podes até ser nómada / mas condenaram-te a ti um dia» (p. 12). Este aspecto legitima alguma desconfiança relativamente à relação mantida entre o sujeito poético e o espaço geográfico onde exerce a sua actividade, algo que se torna menos confuso no poema que oferece o título ao conjunto: «onde vamos senão a lado nenhum / agora que ultrapassámos o porvir / avelámos a própria velocidade da luz // na mesma direcção de sempre até ao cais / a mesma colecta / apurada / pela lâmina dos dias / que nos coça os bolsos rotos da pele caduca // e o carro ou o autocarro / o comboio ou // o barco que partirá num fim de tarde escuro / e os bilhetes que serão sempre os mesmos» (p. 15). A multiplicidade de sentidos que o poema admite não esconde o desespero face à monotonia quotidiana, sobre ele paira a nuvem de uma deslocação impossível. Como é óbvio, esta deslocação pode ser interpretada em vários contextos. Agrada-me particularmente a ideia de uma deslocação interna, pessoal, íntima, a impossibilidade de sairmos de nós próprios por a nós próprios estarmos condenados, e de essa condenação resultar de uma série de condicionantes (biológicas, culturais, geográficas) que se intersectam em diferentes momentos da vida. Esta “impossibilidade” como que dificulta a comunicação, oferecendo à poesia o seu papel conciliador. Ou seja, o poema apresenta-se como o lugar onde os impedimentos se ultrapassam e a incomunicabilidade do ser se resolve mediante uma linguagem libertadora. Neste sentido, a poesia de Pedro Afonso surge na esteira do grande poeta algarvio António Ramos Rosa. Há um poema onde tudo isto ganha uma forma extraordinária, por nele lograr o poeta um equilíbrio raro entre o que os olhos vêem, o coração sente e a cabeça pensa:

urbanismo

ainda há cães que ladram a noite fora
de dentro de casas com pequenos quintais
onde alguém conseguiu pôr uma cadeira atravessada
uma mesa

conheço um sítio onde uma senhora rega
uma planta na rua
e outro onde não se estaciona no passeio
tenho um amigo que não tranca a porta de casa

janelas sem persianas
tocando a rua onde velhas
espreitam  os carros a tarde inteira
respirando o reflexo de seu bafo nos vidros
são vasos

casinhas térreas entre prédios
abandonadas pelo tempo
com cadáveres lá dentro
fedendo ao tiro que lhes deram nas costas

Repare-se como a enumeração de elementos paisagísticos excepcionais serve para reforçar a degradação do panorama geral, num remate que não enjeita o exterior sem deixar claro que tudo se passa dentro. Nos poemas dos três conjuntos subsequentes, a poesia de Pedro Afonso resvala para territórios mais líricos. Por vezes aparenta uma ausência de sentido, tal é a encruzilhada de sentidos que se interpõem; noutras ocasiões, uma sintaxe rudimentar leva-nos a pensar numa musicalidade cuja principal característica é a oposição à melodia; a maior parte das vezes, esta apresenta-se-nos como uma poesia complexa sem complexidade. Quero com isto dizer que seria supérfluo debitar texto sobre versos tais como «penteio o tempo com o marfim dos dedos» (p. 31) ou «uma ácida cúpula distante / sobrepõe-se-nos / e dos astros corroídos sugamos / no desapego da dor / a alegria doce de cabelos» (p. 45) ou ainda «a mão quando esgravata o ruído / arqueando os ossos cunhando a carne / e cega coça um pouco do silêncio» (p. 56), só para dar alguns exemplos. São versos inchados de imagens e de metáforas, mais ou menos (in)felizes, que tornam inútil o esforço de interpretá-los, sendo talvez preferível predispormo-nos a tão-somente ouvi-los.

3 comentários:

R. Vieira disse...

Que interessante!
Gostei imenso de tuas considerações!
Abraço

Pedro Afonso disse...

Obrigado, Henrique.
Sabe sempre bem ter leitores e ajuda também.
Abraço

Caopoeta disse...

este é um dos poemas com que mais identifico o autor. exelente. abraços.