Tal como existem filmes que se aproximam do western sem
realmente o serem, também há westerns que o são sem que a sua identidade se
esgote nessa categoria. Johnny Guitar é hoje considerado por inúmeros críticos
de cinema senão um dos melhores filmes de todos os tempos, pelo menos a
obra-prima de Nicholas Ray (1911-1979) – realizador a quem devemos tantas e tão
primas obras tais como Rebel Without a Cause (1955) ou Bitter Victory (1956). Apesar
do título remeter para uma figura masculina, no centro da acção está uma mulher
chamada Vienna (Joan Crawford) e a sua arqui-inimiga Emma (Mercedes
McCambridge). Vienna e Emma opõem-se como Eros e Thanatos, são duas forças
contrárias que modelam a raiz maniqueísta do filme, mantendo sobre permanente
tensão um duelo que dura do princípio ao fim. Há uma sequência que as define
com inquestionável clareza:
Emma chega ao saloon de Vienna acompanhada de um grupo de
homens com intenções justicialistas. Quer matar, destruir. Procuram Dancin’ Kid e o seu gangue,
depois destes terem assaltado um banco no centro da cidade. Neste momento já
sabemos da relação próxima entre Kid e Vienna, e foi-nos sugerida a paixão reprimida
de Emma pelo mesmo Kid. O ciúme interpõe-se entre ambas, sendo resolvido pela primeira
com uma cumplicidade distante (o verdadeiro amor de Vienna é Johnny Guitar) e pela
segunda com um ódio de morte, quer a Kid, quer a Vienna. Repare-se na
luminosidade de Vienna, no seu vestido branco, na calma com que vai tocando o
piano (magnífica banda sonora de Victor Young) enquanto os homens vasculham o seu
sofisticado saloon no encalço do bando de Dancin’ Kid. E olhe-se depois para
Emma, no contraste que a sua postura alvoroçada engendra, no fato negro e no
ódio que o seu olhar transparece. Branco e negro, paz e guerra, amor e ódio,
opostos trágicos e universais aqui magnificamente representados. A cena resvala
para uma situação de denúncia onde a inocência de Vienna fica comprometida. Só
o espectador sabe dessa inocência, mas nada pode fazer. Ao espectador cabe
apenas assistir impotentemente ao linchamento que se prepara. Estamos nos EUA
da era McCarthy, e tudo isto evoca, claramente, as listas negras de Hollywood,
a perseguição aos comunistas de que Sterling Hayden, o actor que aqui faz de
Johnny Guitar, foi vítima. Talvez por isso este filme leve o título que leva e
comece como começa, com Johnny regressando para os braços de Vienna cinco anos
depois de se terem separado. Atentemo-nos a outra cena, provavelmente das mais
magníficas cenas de amor alguma vez desenhadas por um cineasta:
A música de fundo é a mesma, mas o ambiente é outro.
Porém, há uma tristeza nesta melodia que confere ao filme um romantismo
constante. Também no western as personagens de Nicholas Ray são de uma
humanidade avassaladora. Por humanidade entendam-se aqui os vícios e as
virtudes que nos tornam, a todos, questionáveis, erráticos, ambivalentes,
frágeis. Os deuses e os semideuses da tragédia grega são o protótipo destes
homens e destas mulheres, como a imperturbável Vienna desmascarando-se num rio
de lágrimas quando deixa sair de si a confissão mais dolorosa: cinco anos a
esperar por Johnny. Nos cinco anos que os afastaram, tantos foram os homens que
ela esqueceu como foram as mulheres que ele recorda. Johnny desfaz-se aos pés
de Vienna e pede-lhe mentiras, ela oferece-lhas indolentemente. Mas logo se
exaspera e reabre as feridas, soltando angustiadas
emoções sob a forma de lágrimas. A música acompanha-os neste reencontro, tornando pungente o fim de
cena como pungentes são todas as feridas caladas no interior de um peito em
carne viva. Johnny regressa em dia de tempestade. Mais do que proteger, vem,
quiçá, recuperar o tempo perdido. Como se isso fosse possível fora dos sonhos
que o melhor cinema torna possíveis.
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