sexta-feira, 12 de julho de 2013

MARTÍRIO




António de Oliveira Salazar entrou na política pelo Ministério das Finanças. Cavaco Silva também. Ambos traziam convite. Salazar instalou-se no poder até à morte. O país carregou-o durante mais de quarenta anos, aguentando todo o tipo de limitações democráticas, uma austeridade agonizante, a guerra assassina do ultramar, uma mesquinhez ideológica cujo legado, à época da Revolução, era uma sociedade inculta, pobre, mesquinha. A sua sombra paira sobre o país, obnubilando atitudes e comportamentos, condicionando uma inércia generalizada que faz de nós um povo letárgico e subserviente. Ironia das ironias, a sua figura inspira admiração, um culto reverencial. Muitos portugueses admiram o ditador. Porventura desmemoriada da história, ou a ela indiferente, uma certa classe instalada, nascida em berço arrumadinho, seguro e confortável, presta-lhe culto. Viu-se isso, de um modo inequívoco, quando Salazar foi a votos num programa de televisão e ganhou. Em muito Cavaco se lhe assemelha, com uma simples mas trágica diferença: é o rosto do poder em pleno regime democrático. Cavaco é a antítese do tesão. Um tipo formal, algo saloio, austero e reservado, o mesmo rosto pálido do ditador. Fala mal, discursa pior, tem uma retórica muito de igreja, não se lhe conhece uma ideia para o país, nunca se lhe conheceu, tem a indolência dos padrecos para quem os males do mundo  são Deus a escrever direito por linhas tortas.  Nota-se o declínio, é certo. Olho para Cavaco e vejo o filho pródigo de uma miséria de pensamento que despreza a cultura, o conhecimento, o saber e se faz perpetuar no poder com as bandeiras insalubres de um catolicismo de catequese. As pessoas adoram, por isso votam. As que votam. Estes dois indivíduos, um no tempo das ditaduras, o outro no tempo da globalização do capitalismo selvagem, determinaram/determinam a vida dos portugueses mostrando-se completa e radicalmente indiferentes à sua vontade. Como uma das características mais marcantes do povo português é o masoquismo, o povo adora-os. Porque o povo gosta de ser maltratado. Como dizia a canção, quanto mais me bates mais eu gosto de ti. Acho que era assim. Se não era, é como se fosse. Porque é assim. O povo adora ser maltratado por quem se está borrifando para a vontade popular, por quem não admite sequer haver uma vontade popular que mereça ser considerada, por quem despreza essa vontade temendo, obviamente, a sua expressão. O legado de Cavaco não vai ser diferente daquele deixado pelo ditador, uma sociedade inculta, pobre, mesquinha. Estamos a regredir para índices de subdesenvolvimento que só vão encontrar paralelo nesses tempos da outra senhora. Cavaco não pode ver isto, a natureza não o capacitou para tal. Mas podia haver quem lho mostrasse. Cavaco também não viu os amigos de que se rodeou durante anos e lançaram o país para o pântano em que se encontra. Lá foi alimentando tabus com bolo-rei mastigado de boca aberta e muitos e longos silêncios. Sempre que tem de falar, a boca seca-se-lhe. Quando fala, mais valia ter permanecido calado. Ele jamais se julgará responsável por tudo o que nos está a acontecer, ele próprio pobre, carente, a viver com dificuldades na companhia da sua mulherzinha. Cavaco não viu, não vê nem verá. Mas eu aposto que daqui a uns anos o povo voltará a coroá-lo com a sua eterna devoção, como uma espécie de mártir que coroa a origem do martírio.

3 comentários:

Tétisq disse...

O retrato é triste mas, concordo plenamente...

hmbf disse...

Seja como for, não sou fatalista. Há sempre a hipótese de piorar.

Ana disse...

Infelizmente não é só "uma certa classe instalada, nascida em berço arrumadinho, seguro e confortável" que o(s) admira e presta culto... E isso é assustador e dá-me uma imensa vergonha...