António de Oliveira Salazar entrou na política pelo
Ministério das Finanças. Cavaco Silva também. Ambos traziam convite. Salazar instalou-se
no poder até à morte. O país carregou-o durante mais de quarenta anos,
aguentando todo o tipo de limitações democráticas, uma austeridade agonizante,
a guerra assassina do ultramar, uma mesquinhez ideológica cujo legado, à época
da Revolução, era uma sociedade inculta, pobre, mesquinha. A sua sombra paira sobre
o país, obnubilando atitudes e comportamentos, condicionando uma inércia
generalizada que faz de nós um povo letárgico e subserviente. Ironia das
ironias, a sua figura inspira admiração, um culto
reverencial. Muitos portugueses admiram o ditador. Porventura desmemoriada da
história, ou a ela indiferente, uma certa classe instalada, nascida em berço arrumadinho,
seguro e confortável, presta-lhe culto. Viu-se isso, de um modo inequívoco,
quando Salazar foi a votos num programa de televisão e ganhou. Em muito Cavaco
se lhe assemelha, com uma simples mas trágica diferença: é o rosto do poder em
pleno regime democrático. Cavaco é a antítese do tesão. Um tipo formal, algo
saloio, austero e reservado, o mesmo rosto pálido do ditador. Fala
mal, discursa pior, tem uma retórica muito de igreja, não se lhe conhece uma
ideia para o país, nunca se lhe conheceu, tem a indolência dos padrecos para
quem os males do mundo são Deus a
escrever direito por linhas tortas. Nota-se o declínio, é certo. Olho para Cavaco e vejo o filho pródigo de
uma miséria de pensamento que despreza a cultura, o conhecimento, o saber e se
faz perpetuar no poder com as bandeiras insalubres de um catolicismo de
catequese. As pessoas adoram, por isso votam. As que votam. Estes dois
indivíduos, um no tempo das ditaduras, o outro no tempo da globalização do
capitalismo selvagem, determinaram/determinam a vida dos portugueses
mostrando-se completa e radicalmente indiferentes à sua vontade. Como uma das
características mais marcantes do povo português é o masoquismo, o povo
adora-os. Porque o povo gosta de ser maltratado. Como dizia a canção, quanto
mais me bates mais eu gosto de ti. Acho que era assim. Se não era, é como se
fosse. Porque é assim. O povo adora ser maltratado por quem se está borrifando
para a vontade popular, por quem não admite sequer haver uma vontade popular
que mereça ser considerada, por quem despreza essa vontade temendo, obviamente,
a sua expressão. O legado de Cavaco não vai ser diferente daquele deixado pelo
ditador, uma sociedade inculta, pobre, mesquinha. Estamos a regredir para índices
de subdesenvolvimento que só vão encontrar paralelo nesses tempos da outra
senhora. Cavaco não pode ver isto, a natureza não o capacitou para tal. Mas
podia haver quem lho mostrasse. Cavaco também não viu os amigos de que se rodeou
durante anos e lançaram o país para o pântano em que se encontra.
Lá foi alimentando tabus com bolo-rei mastigado de boca
aberta e muitos e longos silêncios. Sempre que tem de falar, a boca
seca-se-lhe. Quando fala, mais valia ter permanecido calado. Ele jamais se
julgará responsável por tudo o que nos está a acontecer, ele próprio pobre, carente, a viver com
dificuldades na companhia da sua mulherzinha. Cavaco não viu, não vê nem verá. Mas
eu aposto que daqui a uns anos o povo voltará a coroá-lo com a sua eterna
devoção, como uma espécie de mártir que coroa a origem do martírio.
3 comentários:
O retrato é triste mas, concordo plenamente...
Seja como for, não sou fatalista. Há sempre a hipótese de piorar.
Infelizmente não é só "uma certa classe instalada, nascida em berço arrumadinho, seguro e confortável" que o(s) admira e presta culto... E isso é assustador e dá-me uma imensa vergonha...
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