Só, em meu quarto, escrevo à luz do olvido;
deixai que escreva pela noite dentro:
sou um pouco de dia anoitecido
mas sou convosco a treva florescendo.
Por abismos de mitos e descrenças
venho de longe, nem eu sei de aonde:
sou a alegria humana que se esconde
num bicho de fábulas e crenças.
Deixai que conte pela noite fora
como a vigília é longa e desumana:
doira-me os versos já a luz da aurora,
terra da nova pátria que nos chama.
Nunca o fogo dos fáscios nos cegou
e esta própria tristeza não é minha:
fi-la das lágrimas que Portugal chorou
para fazer maior a luz que se avizinha.
Sinto um rumor de tempo sobre as casas
e detenho-me um instante: que rumor?
são aves de tormenta? ou são as asas
dum povo que passou o mar e a dor?
É um clamor de pedras e de coisas
que no seio da sombra têm voz?
ressurreição de estrelas e de lousas,
armas do mundo erguendo-se por nós?
E assim escrevendo, solto a vida presa
nos vultos que em tumulto me visitam:
tenho livros abertos sobre a mesa
com páginas silenciosas que meditam.
Abertos como frutos, como factos
onde busco a verdade, a luz latente:
livros simples, cálidos, exactos,
com sonhos que a insónia me consente.
No mundo exíguo dum caixilho breve
fito o teu rosto, ó meu amor do mar,
e dos teus olhos bebo o vinho breve
dum torrencial e súbito luar.
As marés em redor da tua ilha;
o pequeno arquipélago na paz
da solidão marinha; a maravilha
do jeito de onda que o teu corpo faz.
Sobre o pálido estuque da parede,
como um espelho da minha própria imagem,
uma seara de Van Gogh morre à sede
no óleo espesso e fulvo da estiagem.
Ao calor do céu de tela passa,
arrancando pedaços de céu velho,
um bando de aves que pressente a ameaça
no horizonte de cor, raso e vermelho.
E de repente dou comigo absorto,
as mãos entre papéis de antigos versos,
soprando um lume que supunha morto
e aquece ainda os dias já submersos.
Ó mãos inquietas, porque não parais?
Mais do que penso, sonho: donde vim?
e as pupilas do tempo, azuis, mortais,
acordam a chorar dentro de mim.
Mais do que sonho, escrevo: as almas dúbias,
pelas florestas onde rumorejam
os velhos génios, o rumor ilude-as
e perde-se em desdém o que desejam.
O resto é um silêncio vegetal
com movimentos secos nas esgalhas:
as florestas e o sono natural
que tu, ó morte, sobre tudo espalhas.
Sono de ramos, de flores silvestres,
com saudade de pássaros e abelhas,
aberta já nas árvores agrestes
a lenta solidão das coisas velhas.
E boiando por lagos mortos, como
qualquer corpo infantil que se afogou,
o tempo sem memória é o outro sono
no contorno do espaço que gelou.
Nos vãos do céu os animais de fogo
dormem como os bichos pela serra,
e entre os tojos alados o seu fôlego
é um silvo de nuvens contra a terra.
No outro pólo da altura as derradeiras
fontes imaginam chãos aéreos:
e sonham, sob o voo das toupeiras
ou das nuvens de cal nos cemitérios.
Ao alto, imprevisíveis tempestades
e um difícil limite a conceber;
debaixo grutas e profundidades,
estruturas a criar e a apodrecer.
À flor do escuro, como sobre as ondas
uma espuma de fogo levantando
águas acesas, quem não ouve o som
das pedras e das árvores flutuando?
Contra as lapas de fraga ásperas e brutas,
o gado guarda o medo dos pastores
que sentem lobos, ao luar das grutas,
amando-se entre a terra e o terror.
A sombra tece do seu visco as flácidas
membranas que sustêm os morcegos;
e, enormes como bois, às rãs plácidas
serve-lhes de canga a escuridão dos pegos.
Com ombros onde poisam aves negras
campónios atravessam lodaçais
e o enxofre de mil estrelas cegas
queima devagar os laranjais.
Pelos campos há moiras verdadeiras
encantadas no suor que a monda pede:
oiço-lhes a voz no choro das ceifeiras
quando o próprio calor chora de sede.
Quando as pedras estalam a gritar
e os cardos sonham margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.
Os troncos crescem cheios de carbúnculos
aos lenhadores que pedem árvores sãs;
e há velhos cegos que a entrar nos túmulos
poupam ainda o oiro das manhãs.
Há uma gota de fogo em cada estrela,
cóleras de sol pelos astros fora:
é a noite inquieta, aos brados na janela,
que assim chama por mim, ou assim me ignora?
E quanto mais estendo as mãos urgentes,
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.
Carlos de Oliveira (n. 1921- m. 1981), in Colheita Perdida (1948). «Desde Turismo, 1942, ou Mãe Pobre, 1945, até às versões definitivas reunidas em Trabalho Poético, dois volumes, 1976, incluindo a então inédita Pastoral, edição à parte 1977, a poesia de Carlos de Oliveira (...) mantém-se fiel a um "sentido da terra" muito diverso das exaltações telúricas de Pascoaes ou Torga, embora numa continuidade mais sensível de Afonso Duarte. É mesmo característico um obsessivo contraste entre o céu e a terra, ou entre a ascensão e a queda, a que a astronáutica, o cinema ao retardador e uma especial concepção do acto poético como magia desrealizadora/realizadora trazem feições muito originais. A preocupação dominante é a de encontrar, na própria estrutura e na elaboração do seu texto poético (marcado pela insónia e por palpitações de angústia hipersensível, num horizonte histórico cerrado ou perverso), o reflexo, ou homologia, da árida e pobre Gândara natal, de um sombrio quotidiano lisboeta, predominantemente nocturno ou quase, ocasionalmente da Amazónia, e de fases de toda uma gestação (dele, poema) que passa pela génese geológica e histórica de um areal, de cada seu grânulo calcário, das formas arcaicas ou fósseis da vida, de uma estratificação que também envolve gerações humanas e classes sociais em conflito, pairando uma incerta, ocasional ou mesmo ténue esperança de dada ave solar humana, que assegure o "domínio integral da consciência" dos espaços terrestres e cósmicos (...)». (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa)
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