segunda-feira, 10 de março de 2014

[Deixa entrar no poema]


Uma palavra que está sempre
na boca transforma-se em baba.
Provérbio Burundi

Deixa entrar no poema
alguns clichés.

Submetidos à experiência inefável,
sua carga (eléctrica?)
escoar-se-á.

Não há uma vala comum para as palavras
decaídas,
um dicionário no inferno;

mas deixa-as vir à tona
da claridade,
e nada lhes insufles. Vê:

não suportam a beleza
que as circunda, abismam-se
em seu ridículo.

Sebastião Alba (n. 1940 - m. 2000). A imagem ao alto foi respigada no weblog Dias de um Fotógrafo, é da autoria de Egídio Santos. Espero que o autor não me leve a mal a reprodução. Sobre Sebastião Alba, escrevi aqui. Nada a acrescentar, a não ser que é, cada vez mais, um dos meus poetas portugueses preferidos. De Luís Carlos Patraquim, um apontamento publicado no Público (6 de Janeiro de 2001), a propósito da antologia póstuma Uma Pedra ao Lado da Evidência: «Inclassificável em termos geracionais, de escolas ou de influências, tudo em Sebastião Alba se foi alquimicamente retraduzindo em voz singular, numa intensidade verbal e metafórica no exacto oposto da dissolução do homem torturado que o habitava. À máxima desarticulação (...) correspondeu sempre a mais contida, culta e tensa das formas. Mas tudo em estratégia de citação e na mais conseguida sublimação da sua circunstância, finita, cercada, lentamente chegando a nada. Actor da insuportável tensão da sua ars poetica, Sebastião Alba foi representando-a por botequins e muitas esquinas de sacaneada ternura, bebendo até ao vómito esse leite que lhe chegou coalhado desde a mais longínqua memória. Um certo jogo irónico serviu-lhe de bordão, adiando o estilhaçar sempre eminente [sic], a fidelidade absoluta à máxima Nietzscheana: "Escreve com o sangue e verás que o sangue é espírito".» Os parêntesis são da minha responsabilidade. 

2 comentários:

Maria Eu disse...

Um sem abrigo por opção. Um poeta por inteiro. Um homem culto, especial.O Dinis que escolheu ser Sebastião.

"Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
(...)"
Sebastião Alba

hmbf disse...

Em suma:

um grande poeta