Um dia é maior do que a soma
das suas horas, às vezes comporta
todos os invernos e as estações assombradas
pelos prejuízos do prazer.
Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica?
A cidade não foi feita para as nossas pretensões,
está apenas alastrada por dentro de nós, crispação
de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.
Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite,
é a própria razão que nos ilumina os atalhos
para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente
para tudo o que não nos acontece.
Rui Pires Cabral (n. 1967), in Música Antológica & Onze Cidades (1997). «Há uma atitude enunciativa na obra deste poeta. Pouca dimensão especulativa, nulo enovelamento do discurso, vontade de contar e de prender sentimentos comuns (na sua aflição, no seu contentamento, nos seus actos menos habituais), nenhuma vontade de confrontar o leitor com outro mundo senão o mundo complexo que é já o seu. E tudo com um rigor explanativo e organizativo que nunca deixa cair os versos em qualquer mau gosto imaginístico, em qualquer trejeito epigónico, em qualquer efeito de facilitação sentimentalista, em qualquer truque de conceitos patetas em que - sobretudo já chegou isto a algum do dito romance de agora - a linguagem literária parece querer emular o nojo da linguagem publicitária. Tudo isto é como que deitado ao lixo por estes versos. Também se pressente o esforço de não ser pedante com as breves anotações culturais, que só com rareza se consegue tornar vital em poesia. Aqui, esses breves envios têm a subtileza de não pretender esmagar, antes de oferecer como partilha que pode ser aceite ou não, que não é essencial para a compreensão absoluta do que se diz» (Joaquim Manuel Magalhães, in Rima Pobre).
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