Falemos de William A. Wellman (1896-1975). É de uma
injustiça tremenda que esteja tão esquecido. Veterano de guerra, começou nos
tempos do mudo. Wings (1927) foi o primeiro filme a levar um Oscar da Academia,
catapultando o realizador para a lista dos imprescindíveis. A experiência
militar de Wellman permitia-lhe filmar a guerra com realismo, fazendo da
aviação tema predilecto. No entanto, os westerns permitiram-lhe exprimir a sua
consciência social com inigualável consistência. The Ox-Bow
Incident/Consciências Mortas (1943), com Henry Fonda (1905-1982) e um quase
irreconhecível, de tão jovem, Anthiony Quinn (1915-2001), é dos mais conhecidos
e celebrados. Mereceu uma nomeação para os óscares na categoria de melhor
filme. Seguiram-se Buffalo Bill (1944), Yellow Sky (1948), Across the Wide
Missouri (1951), entre outros. The Ox-Bow Incident tem argumento de Lamar
Trotti, o mesmo que escreveu Young Mr. Lincoln (1939) para John Ford
(1894-1973). Não admira, portanto, o tom sentimental e moralizante do final.
Mas impõe-se uma contextualização. O filme surgiu durante a Segunda Guerra
Mundial, nomeadamente numa fase em que os aliados ganhavam terreno. Tendo por
tema uma questão tão sensível como os linchamentos públicos, então frequentes num
mundo assolado pela guerra, o clima social era especialmente propício a
reflexões sobre os dilemas da justiça e da sua aplicação. A história acompanha um
dia de dois cowboys numa pequena e entediante cidade do Nevada, desde a sua
chegada no termo da "jorna" até à alvorada do dia seguinte. Praticamente todas as
cenas são filmadas em cenário nocturno, fazendo sobressair a luz das fogueiras,
das lamparinas, dos fósforos e, por consequência, as silhuetas dos
intervenientes. Isto oferece às personagens uma intensidade dramática especial,
os actores são filmados com a intenção evidente de fazer exprimir nos traços do
rosto sentimentos profundos e ambivalentes: do rancor à inveja, do ciúme ao
medo, do ódio à compaixão, da cólera ao nojo…
Perante a notícia do suposto
assassinato de um rancheiro local, um grupo de cidadãos reúne-se para apressar
a justiça. Movidos pela vontade de vingança e pela fúria, ou por sentimentos
individuais que a frustração recalca, querem capturar os eventuais criminosos e
enforcá-los. Querem fazer justiça pelas próprias mãos, opondo-se à própria
justiça enquanto serena e apurada averiguação dos factos. Alguns elementos da
comunidade resistem à decisão da maioria, mas de pouco lhes vale a consciência
moral e a retórica dos discursos. Aqueles homens procuram acção, os seus rostos
dissimulam segredos pulverizados de maus sentimentos, de ressentimentos e desencantos
inconfessáveis. Não precisamos de saber o que se esconde por detrás daqueles
rostos sem luz, compreendemos que o que quer que seja que aí se esconda é motor da
violência iminente. William A. Wellman não expõe a violência para
nos mostrá-la, optando, com inteligência, por sugeri-la nas sombras dos gestos,
das discussões e da indiferença ao sofrimento alheio. Na realidade, aqueles indivíduos não estão
tão interessados em fazer justiça como estão empenhados em responder aos seus
próprios ressentimentos com a excitação do momento. Para eles, matar supostos ladrões de gado, eventuais assassinos, é como participar numa
festa que o marasmo social em que vivem lhes nega. Não por acaso, o retrato
traçado daquela cidade é-nos apresentado logo no início: a cidade parece morta,
praticamente não existem mulheres, as que há estão casadas, resta o bar, mau uísque,
jogo, bulhas ocasionais. A morte da cidade reflecte a morte das consciências
dos seus habitantes, a alegria e o divertimento estão tão enterrados na cidade
como nos corpos dos cidadãos. Não deixa de ser curioso que a verdade dos factos
estivesse do lado da minoria, a minoria que se opunha ao linchamento de três
pessoas inocentes. É quase sempre assim. E no final resta a carta, a carta
derradeira de um dos réus, de uma das vítimas, a carta deixada para a mulher e
para os filhos, denunciando e testemunhando o erro de que era vítima com sentido
de justiça e de humanidade irreconhecíveis nos seus assassinos.
The Ox-Bow
Incident permite-nos redescobrir o que faz de nós humanos, ao mesmo tempo que
observamos o grupo de perseguição a cavalgar no encalço das suas presas e não
conseguimos distinguir os homens das bestas. Porque o mal está, sem dúvida, dentro
de cada um de nós. O que nos torna humanos é a consciência desse mal e a
confiança na justiça. Sobre o mal que está dentro da própria justiça tratam
outros filmes, alguns dos quais já temos vindo a recordar.
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