quarta-feira, 2 de abril de 2014

A CORRIDA DE 100 METROS


Vejamos o mundo.
Exércitos, lugares onde se sofre,
sacrifícios da mãe pelos quatro filhos, o erudito de óculos a
examinar
o filme pornográfico,
o velho de passo lentíssimo com um casaco exagerado,
uma criança a troçar de outra mais fraca,
o casal a discutir por causa do ruído dos pés de um
e da sensibilidade do ouvido do outro,
e no meio de tantos factos e de tão diversas possibilidades,
oito homens com calças curtas e números nas costas
correm cem metros
- nem um centímetro a mais - e ganham ou perdem.
e uma vitória, por exemplo, pode levar alguém a curvar-se
e a chorar. E o assunto são cem metros de espaço do Mundo.
Pensa, por exemplo, no espaço de um país
ou no espaço da tua casa,
ou no espaço que percorres atrás da rapariga
que te largou a mão no meio da cidade;
porém nada mais há em alguns instantes, para esses homens,
além de: cem metros. Cem metros de espaço no planeta.
             Vejamos, pois, o Mundo outra vez.
Como quem lê pela segunda vez um livro. Voltemos atrás.
Vejamos onde o homem perdeu a razão.
Em que momento.


Gonçalo M. Tavares (n. 1970), in 1. Autor prolixo e inclassificável, Gonçalo M. Tavares estreou-se em 2001 com Livro da Dança. Publicado numa prestigiada colecção de poesia da editora Assírio & Alvim, à época referência maior da produção poética nacional, esse livro aparece na mais recente organização que o autor fez da sua bibliografia ao lado de um outro, Investigações. Novalis (Prémio de Revelação APE/IPLB – Poesia 1999), sob a designação genérica de Investigações. O facto é tanto mais relevante quanto o autor parece considerar Poesia, no conjunto da sua obra, apenas o livro 1 (Relógio d’Água, Novembro de 2004). Sobre Gonçalo M. Tavares muito se tem escrito: «Numa altura em que uma nova inocência épico-narrativa restaurou a narração do tipo “A Marquesa saiu às cinco horas”, é bom encontrar quem se coloca à distância da tagarelice e do “Kitsch” novelescos» (António Guerreiro, Expresso, 29 Maio 2004); «Esta escrita-leitura multiplica as mediações literárias e culturais e está nos antípodas de todo o realismo: corresponde, de modo geral, a uma intenção alegórica que põe à distância o mundo, o real, a sociedade» (idem, ibidem, 4 Dezembro 2004); «Mais uma vez Gonçalo M. Tavares nos surpreende. Raramente encontramos autores literários com esta fulgurante inteligência das coisas. E com esta estranha e deslumbrante capacidade de inventar o formato dos livros, o livro como suporte, e simultaneamente a literatura e a escrita, em cada novo livro» (Eduardo Prado Coelho, Público, 10 Junho 2006); «Tavares não se aventura por qualquer documentalismo politizado: o que o fascina é o domínio absoluto da natureza sobre o nosso destino. E o que o motiva é a nossa condição comum, precária e em anunciada desagregação» (Pedro Mexia, Diário de Notícias, 9 Junho 2006).

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