Em 1975, o poeta brasileiro Paulo Leminski (1944-1989)
publicou, em edição de autor, o romance Catatau. Dedicada, mas não só, aos
mestres do concretismo brasileiro — Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo
de Campos —, esta obra, concebida durante praticamente dez anos, é, muito
provavelmente, a maior prova de fundo da literatura de língua portuguesa.
Referem-se, a título comparativo, as composições intrincadas de James Joyce, a
experimentação verbal de um Guimarães Rosa, o legado absurdo de Beckett, mas é
inútil comparar. Catatau é obra ímpar, singular, «ego-trip», como o próprio
autor lhe chamou, onde as referências podem notar-se como temperos mas se
fundem no caldo geral de uma festa linguística impossível de decifrar. Entregamo-nos
à festa como quem penetra, pela primeira vez, território selvagem, sendo nisso
o efeito que a obra provoca sobre o leitor paralelo ao efeito que o espaço
geográfico da narrativa provoca sobre a sua principal personagem. Aparece-nos
ela logo na primeira página, chamada de Renatus Cartesius, ou seja, o autor de
Discurso do Método, obra fundadora do racionalismo europeu. Renatus Cartesius
chega ao Brasil, de luneta na mão, amplificando a realidade e, com isso, a própria
transcrição da mesma no texto. O uso frequente de maiúsculas reproduz esse
efeito, em linha com as experiências concretistas que faziam da palavra
impressa mais do que mera expressão de um significado. Renatus Cartesius chega
e deslumbra-se de espanto, atónito com fauna e flora inconcebíveis, «bestas,
feras entre flores», numa orgia de cores, cheiros, sons, movimentos, que a razão
se esforça ingloriamente por acompanhar. Evoca um tal de Artyczewski, sente-lhe
a falta, amigo de manhãs partilhadas a procurar entender o mundo. Espera por
Artyczewski, sendo todo o romance a reprodução dessa espera. Escrito em bloco,
sem um único parágrafo, reclama um dos significados da palavra escolhida para título:
«bloco de composição muito condensado, sem parágrafos». Num vulgar dicionário
de português, catatau é besta grande e magra, mulher velha e magra, pancada,
castigo. Bate-nos forte esta pancada, como a Renatus Cartesius batem os fumos
dos índios: «Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se
populam da estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o
estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce… Singulares excessos… In
primis cogitationibus circa generationem animalium, de his omnibus non
cogitavi. Na boca da espera, Articzewski demora como se o parisse, possesso
desta erva de negros que me ministrou, — riamba, pemba, gingongó, chibaba,
jererê, monofa, charula, ou pango, tabaqueação de toupinambaoults, gês e negros
minas, segundo Marcgravf. Aspirar estes fumos de ervas, encher os peitos nos hálitos
deste mato, a essência, a cabeça quieta, ofício de ofídio» (p. 17). Está dado o
mote. A partir de aqui, acompanhamos Cartesius numa viagem alucinada onde a razão
é assaltada pelo sonho, a realidade apreendida pelos sentidos em estado de
choque, numa digressão onde se misturam línguas como se misturam imagens, onde
o erro está em procurar compreender mais do que é possível sentir, onde a lógica
se transforma na aporia, a percepção desviada e desviante das coisas
contaminada pela efeito irracional dos fumos. Entre a confusão, surgem momentos
vagos de organização mental. Mas logo o aforismo é vencido pelo trocadilho,
pelo trava-línguas, pela palavra inventada, pelo desvario e pelo delírio. Uma
teoria da monstruosidade do texto subjaz à obra. Todos os grandes temas metafísicos
passam pela cabeça da personagem, passam com uma fugacidade estonteante,
saltando de tema em tema, ziguezagueando como insectos na cabeça desgrenhada do
filósofo. A páginas 116: «Fôssemos só os cagadores da merda mais clara neste âmbito
sublunar, não haveria os sublimes seres como eu que maquinam o contrário! Mais
carinho, trata-se do mundo, uma máquina cuja peça principal é minha cabeça! Entre
um então e outro entrão, uma linha feita de infinitos pontos de exclamação, lá
onde a bota de judas pisou na bosta do judeu errante, uma aleia de interrogações,
e só depois o couro do tamborim, coxa de emboada, abarábebé!» Pode a cabeça do
filósofo ser a peça principal da máquina mundo, nada o desmente. O que ela
deixa de ser é o princípio da existência, a matriz do ser, pois essa surge aqui
transformada num arquipélago indistinguível das águas que o rodeiam, fundido
com o caos da realidade, cuja vontade é a dimensão mais lúdica da vida. Séria
brincadeira de palavras, Catatau volta do avesso. No final, Artyschewsky (sic) chega:
vem bêbado. Possui esta edição (Editora Iluminuras, 2010) alguns apêndices de
valor: breves, mas luminosas, (des)coordenadas do autor e um conjunto de textos
críticos reveladores da importância da obra no panorama da literatura
brasileira.
2 comentários:
Realmente é sempre um prazer ler sobre livros aqui. Seja sobre Leminski ou outro.
Abraços.
Obrigado, Soliplass, por mais este encontro.
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