é tão misterioso como o
funcionamento dos neurónios.
João Vário, Exemplo Coevo
Uma das boas notícias que 2013
trouxe à poesia portuguesa foi a inauguração de uma colecção de poesia na
editora Tinta-da-China. Livros graficamente bonitos e com distribuição alargada,
tornando acessível um género geralmente acantoado no espaço cada vez mais
ingovernável das livrarias portuguesas. Com coordenação de Pedro Mexia, esta
colecção acaba de ver sair o seu quinto volume. Vai fazer um ano, publicou-se o
primeiro. Exemplos (Tinta-da-China, Maio de 2013), de João Vário, pseudónimo de
João Manuel Varela (n. 1937 - m. 2007), serviu de pórtico. E que pórtico. Poeta
praticamente desconhecido dos leitores portugueses, João Manuel Varela nasceu
em Cabo Verde, estudou medicina em Coimbra e Lisboa, exilou-se na Bélgica. Com
vasta obra publicada no domínio científico, escolheu para pseudónimos
literários os nomes de João Vário, Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial. Cada qual
tem as suas particularidades, sendo João Vário o poeta do mundo, errante no
espírito, meticuloso na escrita.
A sua obra começa a ser
publicada em Coimbra, no ano de 1958, com um livro posteriormente retirado de
circulação. Exemplos é monumento arquitectado com rigor, cujas fundações
remontam ao ano de 1961 num caderno de poesia intitulado Êxodo, organizado com
Luís Serrano e Rui Mendes. De doze volumes projectados, sairão nove: Exemplo
Relativo (1968), Exemplo Dúbio (1975), Exemplo Próprio (1980), Exemplo Precário
(1981), Exemplo Maior (1985), Exemple restreint (1989), Exemple irréversible
(1989) e Exemplo Coevo (1998). Este volume da Tinta-da-China, organizado por
Osvaldo Manuel Silvestre, deixa de fora os dois livros escritos em língua
francesa, escolhe excertos dos restantes respeitando a estrutura rígida de cada
um deles: uma ode inicial e a divisão do poema em três cantos. O método faz
estremecer o leitor contemporâneo, porventura mais habituado a construções
singelas. Mas os mestres de Vário são de outros tempos: «Pound e Eliot, nossos mestres
mais ditosos» (p. 260).
A poesia de João Vário
esquiva-se ao paradigma do escritor dito africano, sendo a designação de poeta cabo-verdiano
demasiado estreita para alguém cuja escrita repercute constantemente ambientes
urbanos e influências culturais europeias. Do texto bíblico aos clássicos,
destes aos modernos, são diversas as citações ou evocações que se intrometem
nos poemas, servindo de referencial a reflexões intensas sobre temas tais como
a morte (logo no primeiro livro), o exílio, o tempo, a predestinação, a
cidadania. Silvina Rodrigues Lopes dirá: «Em toda a poesia deste autor
encontramos o mesmo imenso obstáculo à decifração — perseverança na opacidade,
que se gera pela reflexão que hesita e pela atenção ao que vem, o nascer do
mundo, na sua irreconhecível e demasiado próxima escrita» (Via Atlântica, Junho
de 2009). No entanto, o que há de enigmático em João Vário é uma original articulação
da linguagem com a experiência, numa escrita onda redemoinham imagens, se recorre
à anáfora com frequência, uma escrita que retoma os seus motes diversos e neles
insiste até à saturação de um impulso que vislumbra na sombra disfarce ideal
para a expressão da consciência.
A recorrência a superlativos
sintéticos sugere-nos uma intensidade emotiva que os poemas, altamente reflexivos,
exploram a partir de problemas fundadores como aquele expresso logo nos versos
iniciais: «Porque alegrarmo-nos na nossa obra / é a parte que nos cabe, / pois
quem nos fará voltar / para ver o que será depois de nós?» (p. 13) Esta dúvida,
que parece percorrer todos os volumes, surge posteriormente colocada de outras
formas. Com um ritmo avassalador, repleto de curvas e contracurvas, João Vário
disseca a experiência vivida para, a partir de um trabalho anatómico que por
vezes resvala num tom oratório, nos inquietar de novo com a ditadura do tempo,
numa espécie de ataque ao destino onde a posteridade e a eternidade são capturadas
pelo eterno retorno. Vejam-se, a título de exemplo, estes versos do canto
segundo do Livro 4, Exemplo Próprio (p. 144):
Homem de pouca fé, por que
temes o peso dos teus passos?
Vamos pela vida arrastando
essas noções
de nação, de cultura, de
civilizações
- coisas estranhas, sem
dúvida, à índole do mundo,
da fraternidade ou da
natureza,
porém coisas talvez da ordem
das coisas,
das fábulas ordinárias,
mas será que somos disto ou
daquilo, que a verdade é essa,
que não escutamos senão de
dois ouvidos
e há um país para a leitura
dos nossos mitos próprios
e que a alma não acende além
do madeiro recebido
as parábolas que o auxílio
sugere
e as volvem, quando deus
morre, melhor árbitro do mundo?
E comparem-se agora com estes,
do canto terceiro do Livro 9, Exemplo Coevo (p. 277):
Sabe-se que os homens são
fracos, volúveis,
que esta terra é pequena e
molesta,
e o bem e o mal apenas são
esse tédio das euménides,
porque, em verdade, os justos
não se revoltam,
as musas são imperturbáveis
e não pode haver Sodomas e
Gomorras indefinidamente,
porque o homem olha e é Deus
que se faz estátua.
Tal, se nos interrogamos sobre
o sentido do desvelo
ou da violência, como ele as
duas metades
do nosso corpo separa, dando
metade
às nossas camas e a outra
metade distribuindo
por estranhos como moeda pobre
ou erva de Constantinopla,
o fundo tocamos de tal
imprevidência e a abundância
que a vida reduz a essa conta
divina: o âmago irreconhecível,
a casa, a mulher e tal dom da
imaterialidade, da decifração.
Homem de pouca fé, por que
temes o peso dos teus passos?
Ora, do problema da identidade
cultural, típico do homem exilado, à experiência aterradora da humanidade, que
encontra no cidadão inevitável desassossego, repete-se uma mesma dúvida: «Homem
de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?» Mas esta dúvida já não é
apenas do homem exilado nem do cidadão desassossegado, é dúvida do ser único e consistente
que a ambos persegue num só corpo, o corpo do poeta. Ontológica, portanto, esta
poesia, por nos remeter para questões universais e intemporais do ser a partir
da experiência finita e efémera de um homem só. A leitura de João Vário exige,
assim, uma predisposição para o pensamento que não se coaduna com uma mera
fruição da linguagem, da expressão ritmada das palavras, com o espanto
provocado pela erupção de imagens e metáforas. Se tivermos que chamar difícil a
um poeta, seja a João Vário. Embora eu prefira o termo exigente.
2 comentários:
Ótima análise. Obrigado!
Ótima análise. Obrigado!
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