Quem quiser compreender a crise que estamos a atravessar,
pode começar por aqui. Bertrand Rothé (economista) e Gérard Mordillat
(escritor, cineasta) pegaram no célebre chavão thatcheriano —There is no
alternative… — e desmontaram com simplicidade décadas de propaganda económica.
Em três conjuntos de textos, coloridos de sagacidade e ironia, explicam o desmoronamento
progressivo do Estado-Providência erguido no pós-guerra com a hegemonia de
teses “liberais” que endeusam os mercados e a sua mão invisível. Transformado
em virtude, o egoísmo só tem um horizonte em vista: o lucro. Desregulamentação dos
mercados, desenvolvimento de empresas offshore, fragilização do sector público,
prostituição da classe política, multiplicação de serviços prestados pela
banca, “big bang especulativo”, flexibilização das leis laborais, uma justiça
impotente face à corrupção financeira, colocaram o poder na mão invisível dos
mercados. Mas os mercados não são entidades meramente abstractas, existem e
funcionam na base de interesses concretos que protegem os bancos e, por
consequência, beneficiam as grandes empresas (multinacionais e não só) onde se movimentam, num trânsito
imparável de cargos, políticos subitamente transformados em empresários e
empresários metamorfoseados em políticos. A realidade francesa, que o livro
expõe com especial atenção, não é diferente da nossa. Cá é tudo ainda
mais óbvio, tacanho até, cá é tudo ainda mais evidente com o beneplácito de uma
população ou desinteressada ou conformada ou impotente (não sei bem).
Banqueiros claramente corruptos cujos crimes prescrevem, políticos incólumes, escritórios
de advogados ao serviço de suas majestades, toda uma classe de ”ultra-privilegiados”
que nos querem convencer, pela boca de «artistas de variedades para distrair o
público, missionários para salmodiar dia após dia o novo catecismo» (vide
Camilo Lourenço, vide José Gomes Ferreira…), da inexistência de uma alternativa a estas
oligarquias que meteram a democracia na gaveta e se estão nas tintas para o bem
comum. Estão-se tanto nas tintas quanto é evidente serem as suas receitas causa
essencial do agravamento das assimetrias no mundo, com a inevitável
globalização a encher os bolsos de uma ínfima minoria que prospera encavalitada
numa imensidão de desafortunados: «Os menos afortunados podem mesmo trabalhar a
tempo inteiro e no entanto ter de dormir no carro. (…) Têm de sofrer em nome da
modernidade e de uma liberdade de concorrência não falseada. E tanto pior se,
depois, de entre aqueles que têm a sorte de ter ainda um emprego, alguns se
irão tornar working poors. Assalariados e pobres, é esse o preço a pagar para
aceder ao mundo do futuro» (p. 66). Mas que importa as pessoas perante a saúde
dos mercados? Apetece parafrasear o pseudo-político português que recentemente
se vangloriava de um país muito melhor apesar de reconhecer estarem pior as
pessoas, como se o país não fosse essa coisa distante a que o próprio dá o nome de pessoas. Ora, ironia das ironias, o que
esta crise veio trazer foi a heterogeneização do paradoxo. Temos, assim, países
de bandeira comunista que são a menina dos olhos de ouro, sobretudo em termos
laborais, dos neo-liberais e seu séquito de empresários avarentos (China? Angola?); temos os
inimigos do Estado a socorrerem-se do Estado quando a dor aperta (BPN?); temos biliões
de dólares desbloqueados para salvar bancos da ruína quando para a educação, a
saúde, a cultura, falta sempre dinheiro (não há, não dá); temos uma plutocracia falida a passear pelo
mundo em jactos privados… «Moral: quando os lucros florescem, o lema é “abaixo
o Estado”; quando as perdas se acumulam, passa logo a ser “viva o Estado”!» (p.
75) Tudo isto, entretanto, se tornou lugar-comum, mas nunca é de mais
lembrá-lo. Sobretudo quando estamos debaixo do fogo das “teorias da resiliência”,
com políticas de austeridade alicerçadas numa disseminação do medo (medo de
falir, medo de perder o emprego, medo de mudar…) que obnubila uma classe média
que a todo o momento procura não ter consciência do quão explorada vai sendo. Os
fast thinkers de serviço, cujo discurso anda sempre a favor do vento, podem
encontrar os seus bodes expiatórios no cigano que vive do RSI, na família que
se endividou para comprar uma vivenda, no peralvilho que ganha o SMN mas não
dispensa um smartphone pago a prestações. Nada disto apaga o essencial, ou
seja, alguém está a lucrar, e muito, com esta crise, alguém tem vindo a lucrar,
e muito, com a propagação do chavão thatcheriano: There is no alternative. À
refundação do Estado podemos propor, em herética alternativa, uma refundação do
capitalismo. Podíamos começar por acabar com os paraísos fiscais, “enquadrar as
práticas dos banqueiros”, nacionalizar as agências de notação, oferecer à
justiça ferramentas básicas contra a prescrição de crimes económicos e fiscais
profundamente lesivos da vida da maioria, lutar contra a fraude fiscal,
reestruturar o sector bancário, taxar os rendimentos financeiros, estabelecer
um imposto sobre o capital… Podíamos, não fosse dar-se o facto de as crises serem
«uma prenda do céu para os especuladores. (…) os responsáveis pelos bancos de
investimento põem-se a salivar só de pensarem nas generosíssimas comissões que
poderão obter com consultorias e restruturações de dívidas. (…) Os mercados são
entidades necrófilas!» (pp. 122-123) Portanto, congelem-se salários e aumentem-se
impostos, proteja-se a incúria dos bancos, vampirizem-se as populações, seja-se
rigoroso, claro está, com os mais fracos. Não é assim? Segunda moral da
história: «Jesus anunciava a chegada do Reino mas o que afinal acabou por vir
foi a Igreja, (…) o capitalismo anunciava a liberdade mas o que afinal acabou
por vir foi a oligarquia». Quem quiser compreender, pode começar por aqui.
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