Todos nós já aprendemos
como se trituram homens
para isso
nos obrigam a ser testemunhas
oculares
do retalhar
curiosamente precioso e exacto
no esquartejamento organizado
encostados à parede esburacada
dos fuzilamentos seriais
que nos querem preparar
esperamos
a bala a chegar lenta
num rigor praticante de eficácia
o carro presidencial a deslizar pela avenida o cão-polícia cão a arreganhar o dente amestrado de metralhadora o banco do comércio a traficar-nos os dedos arrancados e o estilhaço constante do rufo televisivo e a venda supermercado em saldo de eleição da miss-presidente e a pátria que conta com o nosso estrume
lembras-te meu amor
o encontro feroz
que tivemos um dia
numa cama de passagem
rodeada
de portas concentracionárias?
as praias podres fedendo a uniformes com ordem de marcha o mar com o horizonte obstruído por papel de jornal usado nas latrinas e a amputação e a prótese e a condecoração legalmente decretadas
propositadamente
ensinam-nos
o manejar do gatilho
o curso liceal
o uso
do cozido à portuguesa
a lepra
enquanto nos apontam
o buraco da retrete
o papel químico matraqueado na repetição da máquina já experiente o dedo a esmagar-se contra a tecla antecipadamente designada na escrita regulamentar quotidiana e os requerimentos avulsos e a assinatura reconhecida no notário falecido com cancro asmático
o muro
asfixiando as janelas celulares
talvez
apenas na espera paciente
do impacto
dado pela bala
somos testemunhas
visuais
obrigatórias
mas só isso?
o avião jardineiro a regar napalm para que os homens não cresçam tão depressa no metro superlotado a orelha amputada a aumentar a colecção de selos do armador de petroleiros o futebol na cabeça da criança que não rebola bem porque tem nariz
e o aparelho ortopédico um dois esquerdo direito chega atrasado ao emprego vai ter que fazer horas extraordinárias
foram rigorosas
as nossas noites de amor
obsessivamente tensas
e solitárias
lâmina cortante
na memória
recordas-te menina?
os autocarros atulhados ida-e-volta os passos os cabelos enormes ipiando entre a maconha e o amanhecer as pequenas grades envelhecidas e os pães poeirentos sem certificado de pureza e as certidões de honestidade capitalista dentro do estômago com garantia oficial
martelados criteriosamente
na cabeça
depois
entre os olhos e o sexo
preparam-nos para a matança
com o dedo nosso
no gatilho deles
testemunhas somos
das mortes gloriosas em vómito
de heróis com óbito convincente
encostados ainda
à parede esburacada
na espera da bala
demorada
testemunhamos
o cortejo nupcial da filha do almirante com jeito pró negócio o navio pirata carregado de recrutas analfabetos da vida a prancha estreita entre a jaula e o governo o sono obrigatório da pílula própria para o aborto e o cartão da identidade única e o respeito ao clero pois sim e a pia baptismal entupida.
amor
o teu sorriso
e o teu corpo
o teu sexo
como reencontro
proposto pelo tempo
a realidade carcerária
de nós dois
nunca te esqueças
o ministério inteiro com diarreia gasosa purulenta o trust multinacional a jogar gulosamente à cabra-cega a fruta apodrecendo no cais de guindastes esquartejados e a cantora de ópera premiada na tourada-bufa e o carro de esqueletos perfilados a caminho do congresso AS MÃES AGRADECIDAS e a família a família a família petrificada em sentido
e o balão de oxigénio direita volver continência ao presidente não vai chegar a tempo
testemunhas
oculares
somos
mas só isso?
matadores
atentos
à espera
Mário-Henrique Leiria (n. 1922 - m. 1980), in Novos Contos do Gin seguidos de algumas Fábulas do Próximo Futuro (1978). «Entre as mais tardias mas qualificadas repercussões do surrealismo, salientaremos as da obra de Mário-Henrique Leiria, ligado ao grupo dissidente de 1949 mas ausente do país por muitos anos (Contos do Gin-Tonic, 1973; Novos Contos do Gin-Tonic, 1978)» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes). Parcas linhas para tamanho poeta. Contos que são poemas, poemas que são contos, os textos de Mário-Henrique inscrevem-se numa linha de pensamento libertário onde vislumbramos sobressaltos sociais numa consciência criativa que não podia passar indiferente ao ambiente sórdido da sua época. Um ambiente que, apesar das transformações do tempo, teima em repetir-se na actualidade no que tem de politicamente sujo, culturalmente medíocre, religiosamente hipócrita. Sem afastar o riso, o lúdico, ou mesmo a anedota do seu universo, logra sátiras incisivas onde a realidade se fixa a partir da nuvem absurda que estende sobre o mundo e a vida colectiva.
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